Sunday, December 03, 2006

Genival

O bar vazio e os dois lá. Já tinham passado por todos os assuntos. Mulher, futebol, a maldita política econômica, os causos engraçados, essa vida sem tempo, que correria, sabe que o fulano casou? Não tinham mais assunto. Estavam com aquela expressão de que já não tinham mais nada a ver com isso. Já estava tudo assim quando eu cheguei. E não sou eu que estou bêbado, é essa cerveja que não me respeita.
Só restava mesmo ir embora. E os dois ficavam.
- Sabe o que é? Eu devia ir embora.
- Hum. Sei como é.
- Pois é.
- Então vamos indo.
- É, vamos.
- Vamos que vamos.
- É. Vamos lá.
- Isso.
Mais alguns minutos de despedida e pediram mais uma.
- Genival! Ô Genival, traz a última aqui!
- Esse Genival...
- Que é que tem?
- É uma figura.
- Figuraça.
- Mas sabe o que é? Ele é antigo. Garçom bom é garçom antigo.
- Hum. Sei como é.
- Pois é.
Os dois debruçados na mesa. Debruçados não, esparramados. Quase derrubavam a cerveja, quase se derrubavam, perguntavam um pro outro qual cerveja era de quem. Mas não iam embora.
- Porque o outro não é tão bom. Bom mesmo é o Genival.
- Sei.
- Genival é nome de garçom. Assim, pelo menos daqui.
- É verdade. Garçom daqui tem que se chamar Genival.
- Exatamente. Tem que ser Genival.
- Isso.
Ficou aquele silêncio. Quase como se estivessem tomando mais um tempo para refletir sobre o assunto.
- Porque o cara devia nascer e, se tivesse cara de garçom, devia se chamar Genival. E logo depois, devia ser encaminhado pra escola de garçons. “Escola de Garçons Genival”.
- Exato. Está aí. Escola de garçons.
- Deviam todos entrar na escola de garçons, pra aprender a ser como o Genival.
- É isso aí. Tem que ser Genival.
- To certo ou to errado?
- Tá certíssimo.
Chega o Genival. Serve a última com a mesma cara de sempre.
- Obrigado viu, Genival?
- É isso aí. Pô, Genival. Valeu, hein?
- Você é uma figuraça, Genival. Está pra nascer outro igual a você!
- Grande Genival.
E o Genival:
- Já posso trazer a conta?
De repente, num gesto instintivo, afastaram-se da mesa, recostaram-se sobre as cadeiras como que mais dispostos, os olhos mais despertos e aquela expressão de que aqui, obviamente, ninguém está bêbado. Ora essa. Essa é a minha cerveja e aquela é a sua.
- O que é isso Genival?
- Mas que conta, Genival, que conta?
- Quem é que falou em conta aqui, Genival?
- Mas Genival, nós estávamos aqui, elogiando o seu trabalho. E você vem com essa história de conta, Genival.
O Genival deixou os dois falando sozinhos, dizendo que o bar já estava pra fechar.
- Você veja só.
- E eu aqui, pensando na “Escola de Garçons Genival”.
- Que absurdo.
- A conta! Vê se pode? Não são nem... que horas são?
- Qual é a minha cerveja, hein?
- Hum. Não sei mais. Pega essa aqui.
- Essa tá quente. Ô Genival!!
- Pô, mas esse Genival, vou te contar hein?
- É, pois é.
- Chama o outro, que é melhor.

Saturday, November 04, 2006

Dançarina

Dançava com o dia,
com o sol, com o céu, com a vida.
Dançava com a manhã,
e com o tempo, que esquecia.
Dançava distraída.
Dançava até cansar.
Dançava por prazer
com ou sem porquê.
Mas ela com ela,
não sabia dançar.
E tinha saudade,
de dançar de verdade.

As chuvas chovem

Num dia ou no outro
As chuvas chovem
E você vai fazer o quê?
Seu mau humor não me traz sol
Mas te deixa só
Chuva não é defeito
Então não dá pra consertar

Se o erro te irrita
A culpa é toda sua
É a vida que lhe incita
A verdade que se insinua
Que enquanto molha tuas roupas
e faz teu passo apressado,
alimenta o verde do cerrado.

Las cucarachas

Tenho medo das baratas. Não tenho medo DE baratas. Afinal, eu sou homem, zagueiro principal do time da cento e dezesseis, filho, neto, primo e sobrinho de gaúchos, grosso como dedo destroncado. E tem mais: esse negócio de medo de barata é coisa de fresco.
Mas enfim, tenho medo das baratas. Sinto que elas são mais fortes, já que só elas sobreviverão a um ataque nuclear. Elas são feias, sujas, entram aonde querem e não estão nem aí com toda sua inconveniência. Também não dá pra conversar com elas. Ou seja, são o símbolo da queda definitiva da civilização. Como se a existência das baratas fosse um aviso, pois num mundo onde pode existir baratas, qualquer coisa pode acontecer, até mesmo uma guerra atômica.
O silêncio enigmático das baratas é no mínimo uma expressão facial, se é que baratas têm face. Uma expressão de superioridade, dizendo que sim, eu sou amedrontadora. Algumas pessoas me dizem que não há porquê temê-las. Elas não mordem e não são venenosas. É quando eu respondo, indignado: “e precisa??” Também não sou nenhum pouco fã de “La cucaracha”. E apesar da grande semelhança entre “las cucarachas” e certas políticas e códigos de ética vigentes, tanto no cenário nacional quanto no internacional, não quero comparar nada nem ninguém a elas. Afinal, as baratas são importantes para o equilíbrio ecológico. Por isso nós as toleramos e fingimos que elas não estão por aí, mesmo porque, é mais confortável pensar que elas nem existem.

Friday, October 13, 2006

Escudos e armaduras

Larguei meu escudo,
tirei as armaduras
e as tensões das minhas costas.

Tudo que são
defesas impuras
mandei embora dos corações
e levantei manhãs dispostas.

Mas agora, a luta se ri.
Ri do meu cansaço
diz que fui tolo,
porque descansei o braço.

A armadura não quer me vestir.
O escudo, não quer meu abraço.
Magoado que está
não quer consolo
nem palavras de amizade.
Fica só,
sem golpear ou se defender
da saudade de você.

Saturday, September 09, 2006

Iogurte e refrigerante

Ele tentou dizer. Não dá. Chega disso. Cansei. Parei contigo. Não me liga mais. Mas ela não transigia, não o deixava em paz. Foi quando ele disse:
- Arrumei outra.
E ela não disse que ele era um canalha e que ia jogar todas as fotos deles fora, e não disse que esperava mais dele depois de tanto tempo e que agora sim ela esquecia dele de uma vez. E também não fez um silêncio interminável ao receber a notícia de que ele, um amor de 9 anos, tinha arrumado outra. Ela simplesmente disse:
- Não inventa.
E ele sustentou:
- Arrumei sim.
- Arrumou nada. Você não arruma nem seu armário.
- Pois arrumei. E ela está vindo pra cá.
Ela fez uma expressão de desdém. Mas ficou atenta com o canto do olho. E enquanto a outra não chegasse, eles iam se lembrar da segunda lua-de-mel, em Veneza. Ou, melhor dizendo, ele ia ser lembrado mais uma vez, da segunda lua-de-mel. Em Veneza. Ganharam um daqueles prêmios promocionais de refrigerante. Ou era iogurte?
- Você sempre pergunta isso. Já não te falei, mil vezes?
- É, pois é. Mas eu esqueço.
- Você sabe que isso me irrita.
Ele aproveitou pra chamar o garçom. Ia pedir um refrigerante, mas repensou. Ela sempre criticava o refrigerante. Muito açúcar.
- Me traz um... uma água. Com gás. Não, faz o seguinte. Me traz um suco de limão.
Acrescentou mentalmente: “com gás”. E esboçou um meio sorriso.
- Que sorriso é esse?
Ele ia responder e a outra chegou. Beijaram-se. Ele a apresentou para a outra. A outra disse "ouvi falar muito bem de você", era simpática. Comentou que tinha adorado a história de como os dois tinham decidido ter uma segunda lua-de-mel.
- Gostei tanto da história que me inscrevi numa promoção dessas também!
E ele perguntou:
- Dessas de refrigerante?
Ela gritou “garçom!!”, como quem grita “socorro!!”. E a outra:
- Não lembro.
Foi aí que ela se conformou e passou no supermercado pra comprar iogurte.

Do futuro

Não sei o que é o poeta
porque ele tem um ar
de quem não é daqui.
Um ar de profeta,
que olha pro mar
e não pára de sentir,
saudades do futuro.
Como se já estivera lá
como se morasse puro
nos dias virgens
que nossa alma verá.
O poeta,
parece que é tanto,
e assim parece, só de olhar.
Eu só espero que sempre volte
com pedaços de amanhã
pra nos contar.

Thursday, August 31, 2006

Dicionário

Estranhamente, tenho procurado muitas respostas para minhas perguntas no dicionário. E o que é mais estranho, tenho encontrado respostas interessantes, até certo ponto satisfatórias. Claro que antes de encontrar definições relevantes, você se arrisca a procurar por “reverberação” e se deparar com “ato ou efeito de reverberar”, ou “revérbero”. Tudo bem se você já conhecia uma palavra ou outra, mas imagine um garoto de uns oito anos, procurando por “abdicatório”. Em “abdicatório” você encontra com “abdicativo”. Sobre “abdicativo”, tem: “concernente à abdicação, abdicatório”. “Que motiva ou envolve abdicação”. Não seria exagero dizer que no momento em que o garoto lê “concernente”, seguido de “abdicação”, ele abdica da busca pelo conhecimento no que concerne a palavras num dicionário. Mas o fato é que não é só um livro um pouco inadequado para crianças. Nele, você descobre a sua completa ignorância sobre palavras que você nunca nem sequer ouviu falar. Algumas palavras são tão incógnitas que você as lê como um “x”, ou seja, um dicionário pode te fazer de bobo só com orações subordinadas, que acabam por ser as únicas palavras que você realmente entende, como “relativo à”, “referente à”, “ato ou efeito de”, “que, ou aquele que”, “ação pela qual”, etc.
No caso das palavras de baixo calão, a tendência é que você aprenda tudo antes de abrir o dicionário. Mas isso não significa que você aprendeu tudo, ou que o dicionário não tenha nada mais o que te ensinar. Veja por exemplo, com o perdão da palavra, o “cu”. Começa com uma definição simples, bastante científica e formal. Algo discreto. “Ânus”. Soa quase como uma repreensão. Como se alguém estivesse te corrigindo, dizendo que não é “cu”. É “ânus”. No entanto, e para a minha surpresa, o significado seguinte de “cu” é o “fundo da agulha onde se acha o orifício”. O fundo, sim, da agulha. Onde se acha, por sua vez, o orifício. Fiquei realmente impressionado ao saber dessa denominação tão específica, mas é bem verdade que aquele buraquinho da agulha é às vezes tão irritante que até merece o nome. Ainda assim, imagine o que não se sofre com a ignorância nossa de cada dia, se uma costureira te entrega linha e agulha e pede pra você enfiar no “cu”. E acrescenta educadamente: “por favor”.
Na terceira significação, tem as tradicionais nádegas. Ou seja, depois de toda aquela especificidade, o termo passa a ter um caráter mais genérico, designando não só o orifício mas também as suas redondezas. E quando pensei que não havia mais como me surpreender com um livro que deveria ser só uma fonte de pesquisa, resolvi olhar o significado de nádega. Conforme consta, as nádegas são “a parte carnosa superior e traseira das coxas.” Até aí tudo bem, porque as nádegas, mesmo num livro formal e "científico" como o dicionário, não deixam de ser nádegas. Nádegas são nádegas. Alguém te diz que são a parte carnosa superior e traseira das coxas e você age naturalmente. Ou quase. Mas na seqüência, descrevem-nas como “a parte carnuda, por baixo e atrás da garupa das cavalgaduras”. Ou seja, a partir daqui não há mais direção, a civilidade perde o sentido. Depois de “garupa das cavalgaduras” só nos resta a volúpia e a entrega às paixões primitivas. Salve-se quem puder.
O dicionário é também um guia diplomático. Nele você aprende a diferenciar “bernes”, que são larvas de inseto, de “bernenses”, que são suíços. Além disso, é notável que os sufixos não são um recurso seguro, já que golfada não tem qualquer ligação com partida de golfe. A não ser é claro, que um jogador esteja passando mal:
- Esses bernes não sabem o que comem!! – reclamou Sr. Argantes, logo após a segunda golfada.
O mordomo, que o ajudava a se recompor e a se assear, corrigiu:
- Com o perdão da intransigência senhor, os “bernenses” não sabiam da sua alergia a laticínios. Quanto aos “bernes”, creio que eles não se importam, senhor.
Outras pesquisas passam a impressão de serem tão inúteis que é quase como se o próprio Aurélio estivesse ali, pessoalmente curtindo com a sua cara. Um exemplo disso é “jurubebal”, que significa “moita de jurubebas”.
Não sabe o que são jurubebas? Olha no dicionário.

Nudez

A pureza que tu tinhas
era da beleza da vista
e palavras minhas.
E da conquista
que eu via em ti.

E a pureza só tua
eu não a vi,
e te vi nua,
não como és em si.

A pureza que eu via
era a nudeza do meu revés
que lhe repartia
os encantos que tu não és.

E em mim ficou
a pureza da tua nudez
e tua silhueta nua
que insinuou minha timidez.

Friday, July 28, 2006

Ele também tinha isso, quase uma dependência, um tipo de vício, uma dessas loucuras por alguma coisa específica. Ele também tinha dessas coisas, sim, claro que tinha.
- Rapaz, eu sou louco por...
E ele fez um gesto com as mãos, como quem pede ajuda pra se lembrar das palavras.
- Como é mesmo o nome? Sou louco por...
Ficou aquele clima de espera e ele já estava se distanciando, adentrando seu cérebro, a procura daquilo que, enfim, ele não lembrava.
- É uma coisa que a gente compartilha e... mas eu sou louco por aquilo, rapaz. Sou louco pelas...
Ele era louco pelas... pelas... pelas mulheres do Rio. E pelos dias de praia. E pelas histórias do “Flash”, pela torta de morango da tia Lení, pela música do... como era mesmo o nome?
- Mas rapaz, que coisa. Está na ponta da língua, quase saindo, mas não sai. Sou louco por...
Sou louco por cheiro de pizza dormida. Bola de gude, filmes do Charles Chaplin, canções do... aquele, com a voz grave. Alguma coisa com “Gonçalves”.
E entre essas e outras as pessoas iam dizendo suas loucuras. Uns eram loucos por chocolate, outros por cinema, outros por cachorros, etc.
E ele tentando pensar, tentando ouvir os outros, tentando encontrar a palavra, já que ele era louco mesmo, não por cinema ou chocolate, mas por... por...
- Não está vindo na minha mente agora, mas rapaz, eu sou louquinho por...
Mas ele foi interrompido antes. Porque a essa altura da conversa ninguém queria ouvir reticências. E seguindo o fluxo da conversa, já estavam praticamente em outro assunto. Ele até deu uma respirada diferente, como quem acaba de lembrar de alguma coisa, mas era alarme falso. E em seguida, o que era louco por cachorros emendou:
- Por isso eu quis morar numa casa espaçosa, por causa dos cachorros que precisam de espaço e...
De repente, deu aquele estalo. A palavra voltou, como se o “Flash” tivesse vindo com ela escrita na mão e entregado para o Nelson Gonçalves cantar. E ele disse, realizado, como quem acaba de provar uma torta de morango da tia Lení:
- Rapaz, vou te falar.
O pessoal atento e ele satisfeito:
- Sou louco por memórias.

Sunday, July 02, 2006

Conquista


Se tu hás
e meu olho te vê,
és minha
não és sozinha,
em mim estás.

Mas tu só estás aqui
por metade,
do que eu sou.
E meu olho te vê,
minha alma te sente
e eu sinto saudade
e me vou por aí,
onde tua vista,
me desencaminha
mas és sozinha.

Não és minha,
não há mais conquista,
se tu não estás.

Wednesday, June 21, 2006

Assim

Assim...
minhas passadas.
Vão andando
e me dizendo que
pra não terem que escrever mais nada
inventaram as reticências.

O velho de São Jorge

Havia um velho lá de São Jorge que dizia que ia morrer no chão, “porque é pra onde se volta”. Dizia ele, sempre, no final de cada frase sua. Às vezes, pra quem perguntasse, acrescentava, solene: “ora, essa é, implicitamente, a segunda certeza que, na verdade, é a segunda certeza; na verdade, com certeza que, é a segunda certeza, que se tem, por aí. Aí, nessa vida. Não é?” O velho, mais bêbado a cada palavra, esperava a próxima pergunta e solenizava a resposta triunfal, uma vez que todos perguntavam: “e a primeira?” respondia: “a primeira, como já dizia minha velha mãe, que Deus a tenha, a primeira certeza, na verdade é a de que, com certeza, como dizia minha velha mãe, que Deus a tenha, que Deus a tenha, vou morrer.” E não raro era o velho esbanjar sua erudição trocando “vou morrer” por “morrerei”, ou até, numa ocasião especial, “morrer-me-ei”. Ocasião especial era qualquer garota atraente que lhe desse atenção, sem que com isso lhe arranjasse uns trocados. Quando recebia esmolas, indignava-se, e bradava contra a ditadura enquanto guardava os centavos no bolso esquerdo, porque o direito estava furado desde antes do golpe de sessenta e quatro. Entretanto, ao invés de maltrapilho, mantinha aparência razoável que, ainda que razoável, não tirava-lhe o ar de sua própria peculiaridade:
- O rapaz tão estimado, desce mais uma, que eu vou morrer no chão, que é pra onde se volta. Não é?
- Mais morto e mais no chão você não fica. Basta por hoje. Essa foi a última.
- Não foi não!
E nisso, começava um discurso:
- Achais que poderes podares minhas liberdades. Queres matares-me por dentro de mim mesmo. Morrerei no chão, que é pra onde se volta! Tá me ouvindo? Estais a me ouvirdes? Eu pago-te sempre o que, devendo a ti, devo-te.
Assim disse o velho, enfiando a mão no bolso direito da calça de linho. E acrescentou:
- Morrer-me-ei no chão, que é pra onde voltar-me-ei.
Era o velho “tão antigo quanto o sexo”, assim dizia ele. Alguns diziam que era mais velho que Raul Seixas, que nascera “há dez mil anos atrás”. Ninguém sabia ao certo quantos anos tinha, nem ele mesmo, até porque lhe falhava a memória depois de tantos dias alcoolizados.
Deitava-se encharcado e secando ao sol, na única calçada da cidade que ficava aos redores donde ele bebia para os santos. Para os santos sim, pois que eram a única razão de sua bebedeira. Afinal, para cada dose havia um santo homenageado. E é claro que nunca lhe falhava a memória pra lembrar nomes e mais nomes de santos que ninguém sabia que existiam. Dizia ele que no céu, aonde já estivera várias vezes, ninguém pagava pela bebida, desde que servisse uma ou outra para os santos.
- Olha, digo uma coisa: santo nenhum, entendeu? Santo nenhum. Olha, não tem um. Não tem um santo que recusa bebida. Não tem. Pode procurar. Pode procurar que não encontra. Não encontra. Digo porque eu sei. Vou mentir pra quê?
De sábado em sábado, ou de domingo em domingo, alguém acabava ouvindo sobre a cidadezinha mais próxima onde havia uma queda d’água de nome “Pedra Azul”. E visitava São Jorge. E querendo ou não, gostando ou não, acabavam conhecendo e ouvindo o velho. A verdade é que todos iam de uma forma ou outra se divertindo, e curiosamente perguntavam:
- Santo nenhum?
Ao que o Velho não se intimidava:
- NENHUM.
E insistiam:
- Tem certeza?
- Certeza? Digo porque eu sei. Olha: não há santo desse mundo velho que tenha subido lá em cima pra recusar bebida. Digo lá em cima, porque aqui embaixo eles não bebem.
- Aqui embaixo eles não bebem?
- De jeito nenhum.
- Por quê?
- Porque não pode.
- E por quê não pode?
- Você não sabe? Santo não bebe em serviço. Quando tem que descer aqui eles vão logo tomando uma extra lá em cima. Santo não bebe em serviço. Não tem um. Pode procurar.

Silvana

No levantar da persiana
dá pra lembrar
do ar que voa, nas paisagens serranas
dos abraços molhados
na minha e na sua
garoa
onde sempre hão de tocar
as músicas mais insanas.

O meu ar também é o seu
que emana teus traços
e me faz respirar o meu dom
que é tua alma, teu corpo, teu som.

Numa janela
de longe
a nota soa e sente
nas gotas de garoa
que a silhueta segue
rente, às paisagens serranas
das músicas mais insanas
dos ares
que voam
das notas que se tocam
e soam.

Por que não?

– E agora?
– Quê?
– E agora??
– Agora?
– É. E agora?
– Não, agora não.
– Agora não?
– Não, agora é melhor não.
– Por que não?
– Porque não.
– “Porque não” não é resposta.
– Ah, não?
– Não.
– Por quê?
– Porque não, porque não faz sentido.
– “Porque não”...?
– Não, mas não é assim.
– Ah, não?
– Não.
– Então como é?
– Não, é que eu, quando eu disse, foi mais assim, sei lá. Foi diferente.
– Ah, é?
– É, não foi assim, como se eu quisesse, pra terminar a idéia, como se fosse, tipo, “acabou”, entende?
– Claro.
– Quer parar com essa maldita ironia?
– O que você está dizendo, basicamente, é que “porque não” não é resposta. Mas é claro que, se você, o centro do universo, precisar usar um “porque não” ou outro, tudo bem, porque você é diferente.
– Eu não sou diferente.
– Ah, não?
– Não.
– Por quê?
– Porque quando as respostas são óbvias, ninguém pergunta nada sobre elas.
– Sim.
– E quando um porquê é obvio, não se pergunta “por que não”.
– Ah, não?
– Não!
– E por que não?
– Porque nã… Ah, vai pro inferno.
– Vou sim. Por que não?
Depois dos socos que trocaram, cansaço. Os dois sentam-se à mesa.
– Idiota.
– Eu? Eu é que sou idiota?
– É.
­– Ah sim, certo. Eu sou o idiota.
– É sim. E por que não seria??
– Não provoca.
– Provoco sim, por que não??
– Por quê? “Por quê não”?
– É! Por que não?!?
– Por quê? Você quer saber por quê não?!?!?
– É isso aí!!! Por que não?!?!?
– PORQUE NÃO!!!!!! PORQUE NÃO!!!!!!
Voltam aos socos.
Sentados na sala. Compressas de gelo. Ela chega, pergunta o que houve.
– Nada.
– É, não foi nada não.
Ela pergunta:
– Se vocês estão tão estressados por que não vão dar uma volta?
Entreolham-se e respondem, juntos:
­­­– Porque não.

Friday, June 09, 2006

Um dia descobri porque minhas reflexões são tão superficiais. Mas era um motivo tão pueril que eu não me lembro. Mesmo porque, hoje em dia eu sei que “idéias não são metais que se fundem”. Isso quem dizia era meu avô, Deus o tenha. E meu pai passou pra mim, num daqueles momentos em que o pai é o herói do filho. Alguma coisa que meu pai fizera e que eu achara genial, então perguntei, admirado: que legal pai, como você teve essa idéia? E meu pai ergueu o queixo e balançou o indicador, como quem adverte fundamentado por uma fonte de sabedoria superior: “Aí é que está, meu filho. Idéias não são metais que se fundem...” Percebendo o meu fascínio e a minha expressão de óbvia incompreensão, meu pai arrematou com um tom mais corriqueiro: “...mas isso era seu avô que dizia, eu não tenho a menor idéia do que significa.” O interessante é que eu não me decepcionei. Ao contrário, fiquei algumas semanas rindo da célebre frase do meu avô, pensando que aquilo era uma herança, algo que deveria ser passado de geração em geração. Simplesmente porque é tradição e pronto. Também fiquei tentando decifrar a frase, é claro. E decidi que genial mesmo é o que você entende mas não consegue explicar. Por isso, quando acontece de me perguntarem aquelas ardilosas armadilhas filosófico-universitárias eu balanço meu indicador e digo de queixo erguido, “idéias não são metais que se fundem”. E saio logo dali, antes que alguém me pergunte o que significa.

Sunday, May 28, 2006

Em caso de pane

Se você já viajou de avião deve ter ouvido algo assim: “em caso de pane, máscaras cairão sobre a sua cabeça, prenda-as com o elástico”. Leia-se que ninguém virá te salvar ou irá se responsabilizar por quaisquer danos vitais mas você ganha uma máscara de presente. Não sei não. Toda vez que dou uma olhada nessas máscaras de avião tenho a impressão de que elas já foram usadas e reutilizadas. E que não vão funcionar. Da última vez que viajei reparei bem no tamanho do elástico e tenho quase certeza de que aquilo não caberia na minha cabeça. Depois vem aquele papo de que meu assento é inflável e flutua e que é só puxar aqui e ali para montar. É quando me lembro que passei um tempão pra montar um armário com um amigo meu e depois de umas duas horas ainda ficou meio torto. E nessas horas não dá tempo de pensar, mas você deve proceder conforme o indicado na cartilha que se encontra no bolso do banco da frente. A demonstração dos comissários de bordo sempre faz a pane parecer um evento organizado e ordinário, que deve, por obséquio, ser vivenciado de forma ordenada e civilizada. Dá até pra imaginar um passageiro mais revolto numa situação dessas:
- Senhor, devo pedir para que recoloque a máscara, estamos tendo uma pane na pressurização.
- Eu aceito usar a sua, gatinha.
- Senhor, por favor, devo pedir para que recoloque a sua máscara e mantenha o cinto afivelado.
- Você não sabe o barato que dá ficar sem essa coisa aí. Vamos voar juntos, gata.

Nisso chega o comissário e ameaça jogá-lo pela janela, já que agora ela está aberta mesmo.
O curioso é que ninguém tem que fazer curso de pára-quedismo pra viajar de avião. Em caso de pane já está tudo preparado para que você tenha uma morte confortável. Você só tem que manter a calma, usar as máscaras com elástico, colocar a poltrona na posição vertical e se você estiver com pressa de chegar ao chão, há quatro saídas de emergência, duas na parte frontal da aeronave e mais duas na parte traseira.

Thursday, May 11, 2006

Divisórias de um banheiro

Num banheiro, o suor escorria-lhe o rosto. “Tem entrevista às três”. Do toalete vizinho, um desabafo:
- Huuuummmpppffff!!!
Resolveu comunicar-se.
- Ó, amigo! Tem papel aí?
Silêncio. Não deve ter ouvido. E agora? Sem papel, sem relógio e sem comunicação. Mas o pior de tudo era ainda não ter terminado. Decidiu tentar de novo:
- Ó, amigo! Tens papel, aí?
- Huuummmppppffff...
Mais silêncio. Subitamente, houve comunicação:
- Papel, é?
- É! Papel, tem aí?
- Ih, rapaz. Sabe que não tem?
- Como “não tem”? É um absurdo. Isso aqui é um banheiro.
- Toma.
- Que é isso?
- Caderno dois do jornal. Substitui, né?
- Puxa. Obrigado.
Barulho de papel. Aproveitou o restante pra enxugar a testa. Calor. Papel. Banheiro. Comunicação. O que era mesmo? A entrevista!
- Ó amigo! Tem horas, aí?
- São duas e meia.
- Duas e meia? Dá tempo. Tem que dar.
- Compromisso, é?
- Tô quase me atrasando.
- Eu estou de carro, posso te dar uma carona. Hoje é minha folga.
- Puxa. Obrigado.
- Podemos ir agora. Estou terminando.
Ao som de duas descargas barulhentas, os dois saíram de suas cabines e da proteção que tinham de ver um ao outro. Fitaram-se: um deles engravatado, barba feita, pasta na mão; o outro, adolescente, cabelo comprido e um brinco no nariz.
- Olha, não precisa de carona, não.
- Sim. Digo, não. Na verdade eu tinha mesmo o que fazer agora que já são... que horas são?
- Pois é.
E cada um foi pra cada lado.

Saturday, May 06, 2006

Lembrança

Do vento que não faz
a árvore balançar,
do vôo que a ave voa
sem se cansar,
da nota que soa,
quase à toa,
mas diz da paz
que há.

Da paisagem mais bonita
que não se alcança.

É daí que me vem
tua lembrança.

Sim, não e sei lá

Não,
é uma boa palavra
para definir o mesmo que
sim
Então assim se define
que sim ou que não.
Mas a manhã viva ou não,
também,
mal ou bem subjetiva
vira a vida
e sua lógica subversiva
sua louca definição.
E é aí que se percebe
como dizer o que há
e não se diz nem sim nem não
mas sim,
sei lá.

Julia

Quando aqui,
aqui é longe.
E quando lá,
lá é perto.
Quando perto,
quase lá.
E quase longe,
quando aqui.
A saudade,
não finda em si.
E fica linda,
quando finda em ti.

Viva o vinho

Viva
o vinho
e a vida que dá na uva,
os dias que eu saio
pra tomar banho de chuva
e ficar sozinho
com as notas que ensaio
Viva
A orquestra
A luz que invade uma sinfonia
Viva a chave mestra
Que abre o sol de todo dia
Viva
Cada vento que voa
Minhas lembranças suas
A gaita que ressoa
Nossas palavras nuas.

Tuesday, March 21, 2006

Palavras libertadoras

Eu amo palavras libertadoras. E expressões, claro. “Sei lá” é uma delas. Quando se diz “sei lá”, fica implícita a atitude interna de realmente não se importar. “Não sei”, revela somente nossa limitação. Mas “sei lá”, se é que admite a ignorância, simplesmente não se importa com ela. "Não me interessa” também funciona muito bem pra se libertar de um assunto qualquer e não necessariamente admitir que não se sabe do que estão falando.
O “sei lá” tem suas várias aplicações e significados implícitos nas nuanças da linguagem verbal e seus respectivos contextos. Por exemplo: “sei lá” pode ser o mesmo que “me deixa em paz”, ou seja, não fala nada sobre ignorância mas expressa o desejo de não ser incomodado e exclui a possibilidade de ser obrigado a dialogar sobre, sei lá, qualquer coisa. Também pode ser um sinal de humildade quando alguém pensa em voz alta, quase convencido de si mesmo “que isso ou aquilo deve ser assim... você não acha?” E você responde: “é... sei lá”, como quem admite que deve ser assim mesmo, afinal, quem sou eu pra discordar? Outra possibilidade: você está no restaurante, está com muita fome, tem inúmeras coisas pra fazer em pouquíssimo tempo e está almoçando atrasado, quase devorando a comida. Seu colega pergunta se você vê alguma relação entre a mudança do trajeto habitual dos leões marinhos e as variações climáticas mundiais. A não ser que você seja biólogo, meteorologista ou sei lá, apaixonado por leões marinhos e mudanças climáticas, é provável que você diga: “SEI LÁ!!” Que no caso é um substituto educado para “não me interessa”, “não enche” ou outras expressões menos corteses. Dito isso, deve-se destacar que a ecologia ou a paixão por leões marinhos não se torna menos importante. O “sei lá” não significa isso. O “sei lá” é a expressão libertadora, que evidencia a inconveniência e a falta de sensibilidade no que diz respeito aos estados de humor do próximo.
Claro que se D. Pedro I tivesse dito “independência ou sei lá”, a história do Brasil provavelmente seria diferente. “Sei lá” serve para nos libertar de várias situações e de muitas coisas, mas nem todas. Quer dizer, todas que são inconvenientes. E até algumas que nem são. Ou quase todas. Ah, sei lá.

Bohumil Med

Bohumil Med. O que poderia ser “bohumil med”? Talvez um concorrente dos pneus “Pirelli”. Marca de óleo. Ou ainda, com as pílulas “bohumil med” você emagrece mais rápido. Poderia ser “você é burro” em alemão. E tantas outras coisas que minha criatividade não quer alcançar agora. Talvez, depois de escrever e reler seja fácil descobrir que Bohumil Med também pode ser o nome de um restaurante inglês no meio da Grécia, que na verdade nem serve comida inglesa, mas tem o mesmo charme da cozinha horrível de lá. E é claro, fica numa daquelas ruelas escondidas; salvo os turistas mais curiosos e sem sorte, só os ingleses que moram na Grécia e ainda mantêm o mau gosto nacional conseguem encontrá-lo.
Enfim, Bohumil Med também não é nome de remédio, nem de clínica. Bohumil Med é o meu professor de Introdução à Música 1. Mais do que isso, ele é um professor à moda antiga, um pouco conservador, bastante rígido com horários e, até por conseqüência disso tudo, um tanto quanto metódico. Ou seja, num contexto contemporâneo e simplificado, o cara é um terrorista. Fechamos agora nessa sexta-feira, a terceira semana de aula e o Bohumil já nos aplicou 7 testes escritos, sem falar nos testes orais e trabalhos de pesquisa.
Apesar de morar no Brasil há quarenta anos, o Bohumil ainda tem um sotaque forte de tcheco. E suas pronúncias peculiares constantemente ecoam nos meus ouvidos, antes de ir dormir: “múcico non tem férias... múcico non tem sábado, non tem domingo i non tem feriado!” Da primeira vez que eu tive o privilégio de ouvir essas palavras da boca do mestre, fiz questão de olhar no relógio, só pra conferir se estávamos mesmo em dois mil e cinco. Por outro lado, encarei como uma advertência um tanto quanto útil, já que os grandes gênios da música que hoje é chamada de clássica, realmente estudavam no mínimo oito horas por dia. Pressupus então, que o mestre só queria nos lembrar da importância da dedicação apaixonada, aquela que molda o bom músico.
Seguindo essa linha, a da dedicação apaixonada, descobri em poucos dias que minha vida já não era mais minha. Não era mais minha e, no entanto, também não era da música! Descobri, com certo terror, que minha vida era agora do Bohumil. E não adiantava olhar no relógio. Mesmo assim, olhando no relógio e conversando com alguns colegas veteranos, descobri que Bohumil começava o ano primeiro de seu reinado de três décadas. Trinta anos no departamento e ele não mudara seus métodos terroristas. Percebi que um reles plebeu como eu não tinha chance contra uma instituição tão arraigada, tão firme, tão sólida. O que faria eu diante do império “bohumílico”? Desta pergunta, mais uma luz iluminou meu pensamento. Apesar de ter sido mandado para a linha de frente, agora eu não lutaria nem a favor nem contra o império de Bohumil. E infelizmente, não poderia lutar pela música. Agora, o que importava era salvar minha própria vida.

Tuesday, February 21, 2006

Serenatas

Todas as madrugadas
são enluaradas
e acordadas, pelas minhas serenatas.
As flores e as melodias e violões
nas horas mais insensatas,
vão cantando os fanfarrões
que amam dentro de mim.

E meus gestos são assim
serestas, vozes e acordeons
em frente às varandas e sacadas.
Músicas de todos os tons
minhas notas certas com as erradas
tocadas em flamencos dos bons.

E quem me ver cantando, como um guri
que acenda as luzes e abra a janela.
O canto é pra quem sabe ouvir,
pra eu sair e caminhar com ela
até a noite dormir.

Românticos

Uma história romântica.
Ele era um romântico. E estava, completamente, definitivamente, totalmente, intensamente, indiscutivelmente, veementemente apaixonado. E ela, estava, como dizer? Proporcionalmente indecisa. E com tanta indecisão, ele ficou mais apaixonado. E ela era linda. E ele não era de se jogar fora. E ela continuava indecisa. E ele cada vez mais apaixonado. E ela era cortejada e indecisa. E ele, cortejador e apaixonado. E ela, indecisa. E ele, apaixonado. E ele ficou tão perdidamente, irremediavelmente, indiscretamente, extasiadamente, imprudentemente e insensatamente, apaixonado... que desistiu. Pensou: oras, que espécie de mulher é essa que não quer toda essa paixão?

Thursday, February 09, 2006

Marasmo-carnavalesco-braziliense

Brasília, carnaval. Carlão e Jota-jota na sala de estar. Cabelos grandes, brincos no nariz. Dois sofás, duas cervejas, uma televisão e tédio. Nove horas da manhã:
- E o “rock”?
- Não tem.
- Nada?
- Nada.
- Não tem nada?
- Não tem. Nada, zero, vazio.
- ‘Cê tentou o dois?
- No dois tá passando aquele cursinho pré-vestibular. Você não vai passar no vestibular.
- Vou jogar essa cerveja na tua cara.
- Vais desperdiçar vossa bebida porque vos abri os olhos para uma dolorosa verdade.
- O quê?
- Carnaval é tão monótono.
- É.
- Pois é.
Horas se passam. Nenhum dos dois fala. Calor. Três da tarde:
- Acho que vou levantar.
- Pra quê?
- Cerveja.
Volta com a cerveja. Mais silêncio. Três e quinze:
- Acho que também vou ter que levantar.
- Cerveja?
- Banheiro.
Quatro horas. Carlão lembra que o amigo tinha ido à algum lugar. Onde era mesmo? Cozinha? Cerveja? Banheiro? Banheiro. Acho que fora ao banheiro.
- Jota-jota! Ainda tá aí?
- Há! Tem uma lagartixa! Vem cá!
- Lagartixa?
- É, tô jogando cerveja nela. Vai ficar bêbada.
- Legal! Espera, vou buscar mais cerveja.
Indagam-se sobre lagartixas. O que elas bebem? Concluem que cerveja é muito bom. Jogam cerveja na lagartixa. Seis horas.
- Acho que ela morreu.
- Será que entrou em coma alcoólico?
­­- Vamos parar de gastar cerveja.
- É.
- A gente devia fazer isso mais vezes.
- O quê?
- Disse que a gente devia fazer isso mais vezes!
- Tá, mas isso o quê?!?
- Sei lá. Jogar cerveja em lagartixas, por exemplo.
- Ahn.
Voltam para a sala. Carlão, Jota-jota, duas cervejas, dois sofás e uma lagartixa. Onze horas. TV de novo.
- E o “rock”?
- Não tem.
- Nada?
- Nada.
- Não tem nada?
- Nadica.
- Já tentou o dois?
Mudou para o dois. Nenhum “rock”. Meia noite.
- Cadê aquela lagartixa?
- Vou buscar mais cerveja.

Matéria

Garantindo meu silêncio, resolvi escapar por entre as árvores. À primeira vista, não restavam sequer pequenas esperanças e, se eu estivesse ali sem saber porquê ou sem saber de onde, o que poderia restar de uma vida completamente desconhecida no campo científico? O que diriam, o que seria dito? Se é que diriam alguma coisa.
As partículas estavam todas me seguindo, sem que eu pudesse vê-las. Os vírus, bactérias, todo e qualquer macro e microorganismo patológico presente na região rodeava meu corpo, sem que eu pudesse tentar qualquer tipo de contra-ataque.
As moléculas se quebravam, reagiam entre si e, assim sendo, os átomos das moléculas de gases entravam por entre minhas narinas, levando substâncias estranhas para dentro do meu ser. E de repente, meu pensamento confundia-se com meus instintos de sobrevivência, o que provocou mais do que angústia ou desconforto; desta forma, esqueci-me de respirar e morri afogado em minha própria existência.
E toda essa imaginação jogada fora porque tenho de estudar essas malditas ciências exatas.
Pro inferno com os átomos.

Monday, January 30, 2006

UnB

Realmente, passar na UnB não é fácil. E uma vez aprovado, ainda tem os testes não divulgados, que são os de bravura. Dizem que um deles é o RU. Nome científico: Restaurante da Universidade. Nomenclatura popular: “RUim”, “rootz”, “morte lenta” e “RU!!”, imitando a onomatopéia de movimentos peristálticos contrários e por que não dizer, revoltos. Pra mim, sinceramente, tudo que dizem sobre o RU é exagero com exceção da lingüiça e da almôndega. Claro que quando digo isso no CA de música sou expulso a empurrões, protestos e golpes de arco do último violinista que comeu lá. Mas não me intimido. O RU é para os fortes. Só os fortes sobrevivem ao RU. E morando sozinho, dou graças a Deus que ele existe.
Pelo papel higiênico dos banheiros deve-se agradecer mais ainda, já que sua existência não é muito freqüente. Dizem que há a verba para a compra de produtos como o papel dos banheiros, há o pedido dos produtos, há a confirmação da chegada deles, mas ninguém sabe pra onde vão todos esses papéis higiênicos perdidos. Enfim, alguém deve receber mensalão em rolos.
Na UnB há uma matéria obrigatória para todos os cursos: a greve. Todo mundo acaba fazendo pelo menos “greve-1” mas a maioria acaba passando por “greve-2” e até mesmo greves 3 e 4, dependendo do curso e dos anos que têm copa do mundo. Greve é uma matéria difícil que sempre acaba atrapalhando o desenvolvimento das outras. Uma característica peculiar é ser uma matéria completamente empírica e por isso nunca ninguém está suficientemente preparado para ela.
Descrevendo um pouco da UnB eu vejo como sou fácil de conquistar. Mais um daqueles calouros com assunto novo, falando sobre o que os veteranos já não agüentam mais saber. Imagino que o encanto de calouro vá desaparecer com o tempo mas por agora me deparo com idéias para propagandas: “Não é a UnB que conquista o universitário mas o universitário que conquista a UnB”; “UnB: a única universidade com horários flexíveis para torcedores da seleção” ou ainda, “Hoje em dia, no mercado de trabalho é preciso ter estômago forte. Na UnB, também. UnB: porque só os fortes sobrevivem.”

Do corpo

Quando se esquece
a rotina do dia
das mais urgentes etcétaras
das mais curtas reticências
no tempo que se segue
onde nada é loucura
e tampouco consciência
aí é fácil descrever
a beleza do corpo.

Saturday, January 14, 2006

O que passa

A partir das palavras
São muitas
E elas não viajam até lá
Durante as horas
São todas
E elas não são ainda
Nem já
Quando chegam as despedidas
São poucas
E elas não se acabam
Até a saudade
Passar.

Da coerência ao sofisma


Era uma distração. Talvez um hobby, não importa. Juro que não fazia de propósito. Era muitas vezes condenável, mas era também um vício que me tomava por completo e o riso mental era prazer inevitável. Se eu parava, sofria algumas crises de abstinência, começava a só falar de futebol. Aquilo era minha válvula de escape, era como um ensaio da minha tese de mestrado, capítulo um: “Da coerência ao sofisma” da grande obra “Sarcasmos e Ironias”, autoria de… “mim”. Ou talvez fosse apenas algumas posturas irônicas e egoístas que eu tomava que me rendiam histórias. Uma delas foi com uma amiga, Marcela.
Lá pelas sete de um dia escuro, estava eu conversando no ônibus na volta pra casa de todas as quartas-feiras. Eis que senão quando, depois de um dado silêncio, indaguei-me sobre o que era isso. Algo como, “Ah meu Deus, o que é isso?”. Marcela disse que, assim, desse jeito, sem nada, não dava. Sonolenta perguntou:
- Como assim, “isso”? Isso o quê??
O isso era o que, no meu pensamento, fazia a frase ter sentido. Além do que, a pergunta tinha sido feita para Deus. E só porque eu havia dito algo, não significava que era o começo de um assunto. Mas nós humanos não somos trivialmente originais. Menos ainda com o cansaço do dia nas costas e a pressa que, por instinto suponho, temos de chegar no chamado lar, nem sempre tão doce quanto costumamos dizer. Respondi:
- Ora, o “isso” é, sei lá Marcela, tudo né?
- Mas como, “tudo”? Tudo o quê, meu Deus?
Por uma questão de princípios eu não deveria responder à pergunta, mas pensando em manter o mínimo da inter-relação social e considerando que minha primeira pergunta já havia sido recebida pelo interlocutor errado, aquilo tudo era só mais um de muitos dos equívocos inofensivos por aí.
- Tudo o que “tudo” pode ser é o que, obviamente, é tudo.
- Ou seja, tudo o que tudo é, é o que é tudo. Ótimo. Eu devo ser muito burra mesmo, pra não ter notado antes. “Tudo” é o que é tudo, “obviamente”.
Sem perceber, eu caminhava então para a total incoerência:
- Ah meu Deus, esquece...
E mergulhada em equívocos, não tão inofensivos quanto os primeiros, a conversa desenrolava-se nas falas mais absurdas:
- Mas o que nós estamos, quer dizer, o que é isso?!?!?
- Como, “isso”?? Isso o quê???
Enquanto Marcela não poupasse indignação, muitos equívocos se seguiriam por cima de outros. A perda maior, não foi ter travado aquela conversa absurda e também não foi o tempo exagerado que tomou para terminarmo-la, mas sim o gasto que tivemos com o táxi para voltarmos da distante e enorme garagem de ônibus em que estávamos.
No entanto os amanhãs viram hojes, os hojes viram ontens, e os ontens, muitos deles, esquecemos. Avisto Marcela no final do ônibus, me olhando como se esperasse um “olá” e uma boa conversa, daquelas que só nós sabíamos dialogar. Fiz um cumprimento fraco, com os traços leais à fadiga de rotina. Marcela tinha um semblante leve, estava com uma das mais puras e simples felicidades, são aquelas que não tem porquê. Pairava no rosto a alma contente, fazia-me sentir bem. Reparei no seu colar que sempre estava ali, mas nunca estivera bonito como agora. Era de uma beleza indígena talvez? Por que não, Hippie? Talvez fosse apenas uma peça rústica? Talvez eu não devesse perguntar. Contudo, perguntei. Olhando metade pro colar, metade pela janela, para que não fosse aquilo, o começo de um assunto.
- O que é isso?
Carregada de uma leve tensão ela parecia não ter gostado da pergunta.
- Não, de novo não.
- “De novo não”?
- Ah meu Deus, esquece...
Questão de coerência, não hesitei em perguntar:
- Com quem exatamente você está falando, comigo ou com Deus?
Desmoronando o semblante, ela respondeu-me:
- Quem está sentado aqui, do meu lado no ônibus, conversando comigo? Só pode ser Deus!
Se o mau humor repentino era culpa da onipresença de Deus, o que se pode fazer? Perguntei de novo:
- Então...? ...o que é isso?
Subitamente, ela se levantou e foi embora.
Um senhor de olhar perdido parecia ter ouvido nossa conversa. Um senhor de terceira idade. Confuso, franziu a testa, encontrou meus olhos e disse:
- Meu Deus… O que foi isso?
Fiquei pensativo. Como iria explicar que era uma distração minha? Afinal, minha coerência extremista me levaria invariavelmente ao equívoco mais confuso possível, aquele que podemos admitir como ponto de vista alheio somente se duvidarmos do óbvio ululante. E, sabendo eu da diversão que isso me proporcionava, não poupava sarcasmos e ironias. Divertia-me. Desta forma, como um último ato de sarcasmo e ironia coerentes perante eu mesmo, respondi ao velho:
- Meu filho, não tentai penetrar os desígnios de Deus.

Montes porquês


Estou apaixonado pelo impasse
Me amo entre minhas dúvidas
Me chamo de indeciso e fico noites aceso
Esperando que o tempo me cace
na floresta de mim
e que eu saia ileso
vivendo da vida que dá
nos vales de sim
entre folhas de não
frutas de talvez
e horizontes que vão
desde os montes de porquês
até onde a pergunta há.

Tuesday, January 10, 2006

Greve

Falemos sobre a greve. Eu, particularmente, gostaria de fazer greve de lavar roupa lá em casa. O problema principal é: eu moro sozinho. Quando faço greve, logo vou ficando sem roupas, meu lado civilizado começa a reclamar e eu mesmo boicoto meu movimento. Não consigo união nem comigo mesmo e fico criticando o individualismo com o qual os professores tratam a greve. Eu e a minha preguiça, nem sindicato não temos e nunca sequer convocamos uma assembléia. Também, no dia que tiver acho que não vai ninguém. Muitos professores também não vão. Outros vão em respeito à própria categoria, outros vão por causa do café grátis, outros vão porque é uma tradição, outros vão pra votar alguma coisa, enfim, até hoje não se sabe muito bem o que os professores fazem em assembléias. Dizem que é um ritual secreto para seleção de novos integrantes da maçonaria. A meu ver, muitos professores se profissionalizaram em assembléias e greves, juntamente com aqueles que por uma inclinação natural, se viciaram nelas. Não espero dos professores, sejam eles amantes da greve ou não, a criatividade e inspiração para transcender e desviar o curso da evolução sócio-política nacional. Afinal, isso é responsabilidade de todos. Mas o fato de que a greve dos professores é tão organizada e eficaz quanto a minha, deveria ser suficiente para que tentassem outra coisa.

Imersa e bonita

Se o dia chove
Ela não quer sair,
Nem sabe que, mesmo tensa
É tão suave a mente imensa
Suavemente sente a intenção de pensar
Densa, pesa a diferença
E vê o céu movendo, se encaminha na palavra imersa
E ela, palavra tensa e densa, tenciona,
leciona o que pensa
E arde até ser dita
Porque existe, porque é totalmente, completamente, bonita.

Reticências

Estrada
Sol
Nada.
E só eu.
Eu sol.
Mas amanhã
Eu nada,
De manhã
Tudo de novo
Estrada...

Saturday, January 07, 2006

Pessoas e pensamentos


Um ônibus de pessoas e seus pensamentos:
“Aquele idiota do Marquinhos. Marquinhos. Marquinhos. Seu idiota. Mas a equivalência entre a variável “x” do ponto “B” e a variável “y” do ponto “D”, é coincidente com o ângulo oposto ao cateto “b” do ângulo Â, então… Ela é virgem. Ela é virgem. Quer dizer, ela era virgem. E agora? Ela vai ligar. E se ela não ligar? Não, ela vai ligar. Olha só, a roupa. Depois minha mãe diz que eu sou perua. Se ela visse metade dessa louca, nunca mais batia a língua pra falar de mim. Nossa, a calça é aberta… mas olha só isso! Mas que absurdo. Ridículo. Aí, eu vou chegar, vou abrir a geladeira, e ela vai ter comido tudo. Eu sei. Por que será que eu ainda fico me perguntando? Eu sou um idiota, mesmo. Aquele idiota do Marquinhos. Mas ele é um idiota tão lindo! Ai, ai. Marquinhos… sai da minha cabeça, por favor? Claro! Se os ângulos estão opostos pelo vértice, as duas variáveis são iguais! Mas e se ela não era virgem? Talvez ela fosse só um pouco virgem, quer dizer, não totalmente, completamente, absolutamente, virgem. Quer dizer, absolutamente ridículo, erradíssima, totalmente brega, combinação impossível. Se ela tivesse trocado a bolsa brilhante por uma, sei lá, uma… Outra geladeira. Só se eu comprar outra geladeira, porque ela simplesmente não respeita nada, não pensa nos outros. É isso, vou comprar outra geladeira. Porque só assim, os ângulos vão se alinhar em retas paralelas ao eixo “x”. A não ser que eu tenha pego o ônibus errado? É, acho que foi isso. Acostumei ela desse jeito e agora é difícil mudar. Outra geladeira não resolve. A solução mesmo é “x” igual a “b” mais um, logo, ela vai ligar e aí a gente conversa, até porque se ela era virgem ou não, o Marquinhos continua um idiota. Mas que idiota, peguei o ônibus errado!”
Confuso, ele pergunta do caminho:
- Ó amigo, que ônibus é esse?
O ônibus responde, é claro, antes do cobrador.
“E o Marquinhos também é distraído que nem esse aí. E se a soma dos ângulos é de cento e oitenta graus, como é que esse cara não sabe o ônibus que pegou? Porque ele pode não saber onde está, mas o cinto da mesma cor do sapato, com essa calça, ficou ótimo. E pra tudo ficar melhor, a comida de microondas já acabou, o que significa que, independente de ela ser virgem ou não, tem pessoas que são muito avoadas e sem o Marquinhos, a vida perde, realmente, o sentido. E se o sentido for horário, de quantos graus será o ângulo adjacente do triângulo ABC??”
E o cobrador responde:
- Cento e cinco, grande circular.

Leituras


Melhor que meu riso
É onde sorri meu paraíso
Onde o riso nem ri
Porque não quer sair
E se perder daqui.
É onde nos olhos tu lês
O sorriso que tu não vês.
E nos olhos eu leio
Teu caminho do meio
E lá te encontro assim
No sorriso de mim.

Wednesday, January 04, 2006

O bar

O bar é um lugar íntimo. É onde se fala mal de todas as pessoas que incomodam durante a semana. Quase um lar, para que todos nós tenhamos a oportunidade de sermos inconvenientes sem culpa. Ou com culpa mesmo, mas o fato é que no bar tudo parece mais inofensivo. Uma cervejinha ou duas é uma soma inofensiva, principalmente depois das outras trinta e duas. E todos falam ao mesmo tempo, contam as histórias de bar ao mesmo tempo, bebem ao mesmo tempo e de alguma maneira, convergem harmoniosamente na risada final, tudo ao mesmo tempo. Ninguém tem que ouvir ninguém. Ou porque é lei, ou porque a música é muito alta, ou porque estão todos muito bêbados ou talvez porque tenhamos todos a mesma idéia egocêntrica de que o que eu tenho pra dizer é muito mais interessante. Aliás, vocês já ouviram aquela do...
Talvez seja a sensação de estar livre. Quer dizer, na verdade, o bar é uma instituição de manutenção do nosso equilíbrio psicológico. É onde as pessoas se abrem e dizem até aquilo que não sabiam que queriam dizer. E é claro, se arrependem no dia seguinte. Mesmo assim, ainda sobra o triunfo tradicional: “eu estava bêbado”. Hoje em dia, funciona melhor do que hábeas corpus. E também não precisa dizer, “perdoa-me padre, pois eu pequei e nem me lembro direito”. “Eu estava bêbado” já basta. Se não te perdoarem, pelo menos você teve a decência de se justificar.
Outra vantagem do bar é que socializar não exige muita inteligência. Todos são iguais perante o bar. Na verdade nem é preciso falar muito. Uma ou duas frases colocadas na hora certa e no contexto adequado podem garantir a imagem de uma pessoa pelo menos agradável:
– POIS ENTÃO, DUDU!! É VERDADE OU NÃO É?!?
Então, dependendo da verdade, você bate na mesa e diz:
– É ISSO MESMO!! TÔ CONTIGO E NÃO ABRO!!
Ou, no caso da resposta ser negativa:
– GARÇOM, TRAZ MAIS UMA!!!
A única hipótese de ser excluído perante a fraternidade de um bar é pedir, ao invés de uma cerveja, um refrigerante. Pior ainda: uma água.
– Sem gás, por favor.
Nesse momento você se torna um corpo estranho, uma espécie bizarra, quase irreconhecível. Algo assim como um ornitorrinco. Ainda por cima, um ornitorrinco que não bebe. Mas tudo bem, diz o bar. Talvez você seja só uma pessoa infeliz que ainda não descobriu o sentido da vida. Então, vem a pergunta, desconfiada, mas com um certo ar de compaixão:
– Você não bebe??
É quando você percebe que se disser simplesmente “não”, deixará de ser um ornitorrinco infeliz e passará a ser visto como um traidor. Um traidor, um invasor, um espião, um dissimulado e um “duas caras”. Afinal, tudo pode ser perdoado numa mesa de bar, menos essa sua sobriedade. Até a pronuncia da palavra “sobriedade” já é meio sóbria. Uma afronta. É quando você responde:
– Hoje não. Estou tomando uns remédios para gastrite e...
Assim, por causa da gastrite, só dessa vez, está perdoado. Ou quase perdoado. E você sabe disso porque todo mundo faz aquela expressão de falsa compreensão, antes de mudar de assunto:
­ – Aahn...

Livros

Antes que você pense, eu vou dizer. “Esse texto é mais um daqueles”. “Daqueles quais?” você pergunta. E eu insisto: “daqueles!”. Ainda assim você não confessa nada e suplica ”Daqueles, quais?!?”. E aqui há a dúvida. Quando chegamos nesse ponto, não posso afirmar se você realmente não me entendeu. Talvez só não queira admitir que sabe do que eu estou falando. De qualquer forma, não me parece que vai dizer nada. E talvez esteja com aquela cara de me explica logo que eu não estou entendendo. Calma. É simples. Você está numa livraria, por exemplo. Para cada livro que você olha há uma expressão. Se você já leu e gostou muito, retira da prateleira com cuidado. Demonstra respeito, talvez saudade, e sente certa intimidade e satisfação. Segura o livro lido com as duas mãos e diz: “Pô, esse livro aqui…” e acrescenta: “Pô…”. Mas se você nunca leu e começa a se interessar muito, há uma surpresa. Há um outro tipo de valorização, apesar do comentário ser parecido: “Pô…” e acrescenta: “Esse livro aqui…”. Contudo, pode ser que seja só um livro mesmo. Mais um “daqueles”. Talvez você até faça um comentário: “Ih, esse aqui é ‘daqueles’…” e o livro volta pra prateleira. Mas se esse texto é mais um daqueles, qual é o propósito de lê-lo ou escrevê-lo? A verdade é que cometi um pequeno equívoco, esse texto não é exatamente “mais um daqueles”. É ele na verdade, um texto que você ainda vai ler. É um livro que te chamou a atenção. Intrigante, talvez. Você o tira da prateleira, olha a contracapa, lê o título, inconscientemente avalia a brochura, lê uma página ao acaso, lê a contracapa de novo, observa o tamanho da letra, sente a qualidade do papel, observa de novo o maldito tamanho dessas letras pequenininhas, porque será que fazem as letras desse tamanho, deve ser de propósito pra gente ficar com dor de cabeça, lê mais outra página ao acaso, inconscientemente verifica se a cor da capa é agradável, segura com a mão direita e mantém a mão esquerda coçando o queixo. Nessa posição, você olha fixamente para o produto literário. Esquece que está na livraria. E pensa alto dizendo pra si mesmo:
– Pô… Esse livro aqui…
E alguém ouvindo, tradicionalmente pergunta:
– É bom?
Ao que você confirma:
– É sim. Esse aqui é daqueles.
E apesar de você saber que “daqueles” não é bem uma descrição, você sabe que não precisa dizer mais nada. Afinal, “daqueles” era só uma palavra que você usou para dizer que o livro era, enfim, como dizer? Daqueles.

Meu e seu mel

Teus lábios são,
realmente,
de mel.
Mas não têm o gosto
do mel.
Têm o gosto que têm.
Têm a realidade,
de serem seus
e de, realmente,
tocarem os meus,
de tocarem o mel
da minha mente.