Saturday, January 14, 2006

Da coerência ao sofisma


Era uma distração. Talvez um hobby, não importa. Juro que não fazia de propósito. Era muitas vezes condenável, mas era também um vício que me tomava por completo e o riso mental era prazer inevitável. Se eu parava, sofria algumas crises de abstinência, começava a só falar de futebol. Aquilo era minha válvula de escape, era como um ensaio da minha tese de mestrado, capítulo um: “Da coerência ao sofisma” da grande obra “Sarcasmos e Ironias”, autoria de… “mim”. Ou talvez fosse apenas algumas posturas irônicas e egoístas que eu tomava que me rendiam histórias. Uma delas foi com uma amiga, Marcela.
Lá pelas sete de um dia escuro, estava eu conversando no ônibus na volta pra casa de todas as quartas-feiras. Eis que senão quando, depois de um dado silêncio, indaguei-me sobre o que era isso. Algo como, “Ah meu Deus, o que é isso?”. Marcela disse que, assim, desse jeito, sem nada, não dava. Sonolenta perguntou:
- Como assim, “isso”? Isso o quê??
O isso era o que, no meu pensamento, fazia a frase ter sentido. Além do que, a pergunta tinha sido feita para Deus. E só porque eu havia dito algo, não significava que era o começo de um assunto. Mas nós humanos não somos trivialmente originais. Menos ainda com o cansaço do dia nas costas e a pressa que, por instinto suponho, temos de chegar no chamado lar, nem sempre tão doce quanto costumamos dizer. Respondi:
- Ora, o “isso” é, sei lá Marcela, tudo né?
- Mas como, “tudo”? Tudo o quê, meu Deus?
Por uma questão de princípios eu não deveria responder à pergunta, mas pensando em manter o mínimo da inter-relação social e considerando que minha primeira pergunta já havia sido recebida pelo interlocutor errado, aquilo tudo era só mais um de muitos dos equívocos inofensivos por aí.
- Tudo o que “tudo” pode ser é o que, obviamente, é tudo.
- Ou seja, tudo o que tudo é, é o que é tudo. Ótimo. Eu devo ser muito burra mesmo, pra não ter notado antes. “Tudo” é o que é tudo, “obviamente”.
Sem perceber, eu caminhava então para a total incoerência:
- Ah meu Deus, esquece...
E mergulhada em equívocos, não tão inofensivos quanto os primeiros, a conversa desenrolava-se nas falas mais absurdas:
- Mas o que nós estamos, quer dizer, o que é isso?!?!?
- Como, “isso”?? Isso o quê???
Enquanto Marcela não poupasse indignação, muitos equívocos se seguiriam por cima de outros. A perda maior, não foi ter travado aquela conversa absurda e também não foi o tempo exagerado que tomou para terminarmo-la, mas sim o gasto que tivemos com o táxi para voltarmos da distante e enorme garagem de ônibus em que estávamos.
No entanto os amanhãs viram hojes, os hojes viram ontens, e os ontens, muitos deles, esquecemos. Avisto Marcela no final do ônibus, me olhando como se esperasse um “olá” e uma boa conversa, daquelas que só nós sabíamos dialogar. Fiz um cumprimento fraco, com os traços leais à fadiga de rotina. Marcela tinha um semblante leve, estava com uma das mais puras e simples felicidades, são aquelas que não tem porquê. Pairava no rosto a alma contente, fazia-me sentir bem. Reparei no seu colar que sempre estava ali, mas nunca estivera bonito como agora. Era de uma beleza indígena talvez? Por que não, Hippie? Talvez fosse apenas uma peça rústica? Talvez eu não devesse perguntar. Contudo, perguntei. Olhando metade pro colar, metade pela janela, para que não fosse aquilo, o começo de um assunto.
- O que é isso?
Carregada de uma leve tensão ela parecia não ter gostado da pergunta.
- Não, de novo não.
- “De novo não”?
- Ah meu Deus, esquece...
Questão de coerência, não hesitei em perguntar:
- Com quem exatamente você está falando, comigo ou com Deus?
Desmoronando o semblante, ela respondeu-me:
- Quem está sentado aqui, do meu lado no ônibus, conversando comigo? Só pode ser Deus!
Se o mau humor repentino era culpa da onipresença de Deus, o que se pode fazer? Perguntei de novo:
- Então...? ...o que é isso?
Subitamente, ela se levantou e foi embora.
Um senhor de olhar perdido parecia ter ouvido nossa conversa. Um senhor de terceira idade. Confuso, franziu a testa, encontrou meus olhos e disse:
- Meu Deus… O que foi isso?
Fiquei pensativo. Como iria explicar que era uma distração minha? Afinal, minha coerência extremista me levaria invariavelmente ao equívoco mais confuso possível, aquele que podemos admitir como ponto de vista alheio somente se duvidarmos do óbvio ululante. E, sabendo eu da diversão que isso me proporcionava, não poupava sarcasmos e ironias. Divertia-me. Desta forma, como um último ato de sarcasmo e ironia coerentes perante eu mesmo, respondi ao velho:
- Meu filho, não tentai penetrar os desígnios de Deus.

2 comments:

Pedro Nunes said...

Mas... mas... o que é isso?

Elenita Rodrigues said...

hahahaha....
A-D-O-R-E-I!