Tuesday, March 21, 2006

Palavras libertadoras

Eu amo palavras libertadoras. E expressões, claro. “Sei lá” é uma delas. Quando se diz “sei lá”, fica implícita a atitude interna de realmente não se importar. “Não sei”, revela somente nossa limitação. Mas “sei lá”, se é que admite a ignorância, simplesmente não se importa com ela. "Não me interessa” também funciona muito bem pra se libertar de um assunto qualquer e não necessariamente admitir que não se sabe do que estão falando.
O “sei lá” tem suas várias aplicações e significados implícitos nas nuanças da linguagem verbal e seus respectivos contextos. Por exemplo: “sei lá” pode ser o mesmo que “me deixa em paz”, ou seja, não fala nada sobre ignorância mas expressa o desejo de não ser incomodado e exclui a possibilidade de ser obrigado a dialogar sobre, sei lá, qualquer coisa. Também pode ser um sinal de humildade quando alguém pensa em voz alta, quase convencido de si mesmo “que isso ou aquilo deve ser assim... você não acha?” E você responde: “é... sei lá”, como quem admite que deve ser assim mesmo, afinal, quem sou eu pra discordar? Outra possibilidade: você está no restaurante, está com muita fome, tem inúmeras coisas pra fazer em pouquíssimo tempo e está almoçando atrasado, quase devorando a comida. Seu colega pergunta se você vê alguma relação entre a mudança do trajeto habitual dos leões marinhos e as variações climáticas mundiais. A não ser que você seja biólogo, meteorologista ou sei lá, apaixonado por leões marinhos e mudanças climáticas, é provável que você diga: “SEI LÁ!!” Que no caso é um substituto educado para “não me interessa”, “não enche” ou outras expressões menos corteses. Dito isso, deve-se destacar que a ecologia ou a paixão por leões marinhos não se torna menos importante. O “sei lá” não significa isso. O “sei lá” é a expressão libertadora, que evidencia a inconveniência e a falta de sensibilidade no que diz respeito aos estados de humor do próximo.
Claro que se D. Pedro I tivesse dito “independência ou sei lá”, a história do Brasil provavelmente seria diferente. “Sei lá” serve para nos libertar de várias situações e de muitas coisas, mas nem todas. Quer dizer, todas que são inconvenientes. E até algumas que nem são. Ou quase todas. Ah, sei lá.

Bohumil Med

Bohumil Med. O que poderia ser “bohumil med”? Talvez um concorrente dos pneus “Pirelli”. Marca de óleo. Ou ainda, com as pílulas “bohumil med” você emagrece mais rápido. Poderia ser “você é burro” em alemão. E tantas outras coisas que minha criatividade não quer alcançar agora. Talvez, depois de escrever e reler seja fácil descobrir que Bohumil Med também pode ser o nome de um restaurante inglês no meio da Grécia, que na verdade nem serve comida inglesa, mas tem o mesmo charme da cozinha horrível de lá. E é claro, fica numa daquelas ruelas escondidas; salvo os turistas mais curiosos e sem sorte, só os ingleses que moram na Grécia e ainda mantêm o mau gosto nacional conseguem encontrá-lo.
Enfim, Bohumil Med também não é nome de remédio, nem de clínica. Bohumil Med é o meu professor de Introdução à Música 1. Mais do que isso, ele é um professor à moda antiga, um pouco conservador, bastante rígido com horários e, até por conseqüência disso tudo, um tanto quanto metódico. Ou seja, num contexto contemporâneo e simplificado, o cara é um terrorista. Fechamos agora nessa sexta-feira, a terceira semana de aula e o Bohumil já nos aplicou 7 testes escritos, sem falar nos testes orais e trabalhos de pesquisa.
Apesar de morar no Brasil há quarenta anos, o Bohumil ainda tem um sotaque forte de tcheco. E suas pronúncias peculiares constantemente ecoam nos meus ouvidos, antes de ir dormir: “múcico non tem férias... múcico non tem sábado, non tem domingo i non tem feriado!” Da primeira vez que eu tive o privilégio de ouvir essas palavras da boca do mestre, fiz questão de olhar no relógio, só pra conferir se estávamos mesmo em dois mil e cinco. Por outro lado, encarei como uma advertência um tanto quanto útil, já que os grandes gênios da música que hoje é chamada de clássica, realmente estudavam no mínimo oito horas por dia. Pressupus então, que o mestre só queria nos lembrar da importância da dedicação apaixonada, aquela que molda o bom músico.
Seguindo essa linha, a da dedicação apaixonada, descobri em poucos dias que minha vida já não era mais minha. Não era mais minha e, no entanto, também não era da música! Descobri, com certo terror, que minha vida era agora do Bohumil. E não adiantava olhar no relógio. Mesmo assim, olhando no relógio e conversando com alguns colegas veteranos, descobri que Bohumil começava o ano primeiro de seu reinado de três décadas. Trinta anos no departamento e ele não mudara seus métodos terroristas. Percebi que um reles plebeu como eu não tinha chance contra uma instituição tão arraigada, tão firme, tão sólida. O que faria eu diante do império “bohumílico”? Desta pergunta, mais uma luz iluminou meu pensamento. Apesar de ter sido mandado para a linha de frente, agora eu não lutaria nem a favor nem contra o império de Bohumil. E infelizmente, não poderia lutar pela música. Agora, o que importava era salvar minha própria vida.