Wednesday, December 19, 2007

Horário


Às vezes, ele é muito exigente. Um chato, mesmo. É verdade que há alguns momentos flexíveis. Quando acontece, nem parece que é o mesmo horário. E sempre tem uns horários tentando se passar por outros. É preciso estar atento.
Passamos por muita coisa, meu horário e eu. Trabalhos de faculdade atrasados, compromissos de última hora, e agora, o início das férias. Nos separamos, desde então. Foi um adeus meio curto, distante. Quase indiferente. Não vi mais meu horário. Cheguei a esquecer do horário por um tempo e quando percebi, já tinha me afastado dele, já não era mais a mesma coisa, fui um insensível. Agi como se ele nunca tivesse existido, entende? Eu realmente devo desculpas ao horário.
Desculpa, horário. Eu quis manter contato. Até comprei um despertador. Sério. Também pensei em comprar um relógio de pulso e dar um basta nessa mania de olhar as horas só no celular. Mas é uma correria essa vida, não sobra tempo nem para horários.
E não é só isso. Para ser bem franco, eu estou numa fase da minha vida em que não posso ter um horário. Simplesmente não dá. É complicado isso, mas é fato: preciso de mais liberdade, quero curtir mais a minha vida, sem horários. Viver uma fase, sei lá, atemporal. Não estou psciologicamente preparado para ter um horário. Não agora. Agora não é hora de horário.
Porque o importante não é ter um horário só pra ter e dizer que tem, entende? É preciso amar o horário, aceitar os defeitos dele, manter aquele clima. Mesmo porque, antes sem horário do que mal organizado. Ou seja, não é tão fácil: se há uma coisa que me irrita em horários é a obsessão pela exatidão, a inflexibilidade com atrasos, mesmo que pequenos. Aliás, o cerne do problema é esse, os horários não acompanham o ritmo de cada um. São uns egoístas. Só querem saber de si próprios e nos julgam pela pontualidade. Como se o ser humano pudesse abdicar de algo tão peculiar, que o diferencia dos outros animais, que é a capacidade de realmente se atrasar. Afinal, o homem é o único animal que marca as coisas, combina com exatidão os horários e esquece.
Outra característica bastante peculiar e exclusiva do ser humano é a de ficar confuso com o óbvio. Ele marca um horário, chega em outro e pensa que ainda é o mesmo horário. Ou age como se fosse.
- Mas você não falou cinco horas?
- Falei! E agora são cinco e vinte e cinco!
- Isso, é por aí, cinco, cinco e pouco...
É provável que os seres humanos mais relativistas defendam a relação humano e horário, dizendo que a concepção de horário de cada um é um conceito absolutamente sagrado. Mas é óbvio que isso já é outro assunto. Então marquemos um horário pra gente se encontrar e conversar depois.

Thursday, November 01, 2007

Gaitas-de-fole

Eu ouvia gaitas-de-fole.
Havia chuvas torrenciais
e sóis nascendo em quatro direções.

Amanheciam manhãs.

Entardeciam dias e anoiteciam luas.

O tempo era,
e fora,
o tempo é,
e será.

As lágrimas eram sorrisos
de um júbilo tão triste...

A tristeza era a felicidade,
a saudade, do nada que existe.

O infinito passava ainda mais,
porque era lei.

E teus olhos me disseram:
é,
eu sei.

Tuesday, October 23, 2007

Conversando

Outro dia, eu queria conversar comigo mesmo. E nada de nós nos encontrarmos, ando muito sem tempo. Mandei-me um email, que eu li correndo e nem me respondi. Pensei: vou me adicionar no msn.
Nós nos encontramos então, no msn, eu e eu. E foi estranho, não porque era uma conversa de msn comigo mesmo, mas porque eu sou muito diferente de mim. Foi bom, pra me conhecer melhor e saber como lidar comigo. Mesmo assim, ficamos ambos surpresos e perplexos um com o outro. Nós não concordávamos em muita coisa e, claro que as pessoas são contraditórias, mas enxergar as próprias contradições é impactante.
Mas o outro disse:
- Que impactante, que nada. Você já sabia, disso tudo.
- Eu não.
- Sabia sim.
- Eu não sabia de nada. É você que já sabia. Eu fiquei sabendo agora.
- Sim. Mas você sou eu.
Foi aí que eu descobri que tinha coisas que eu sabia e não sabia ao mesmo tempo. E que na verdade, era uma ignorância muito grande achar que eu era sempre inocente. Ou seja, passei a entender que chegar atrasado, por exemplo, não era necessariamente obra do acaso. Muitas vezes, o outro eu, com quem eu não conversava tanto, já sabia que eu ia me atrasar. Porque eu queria me atrasar. Mas ao mesmo tempo não queria. Então, era possível que dentro de mim co-existissem duas opiniões, de fato contraditórias. E que, de alguma forma, eu escolhia qual delas eu ia manter visível pra mim mesmo. Se alguém me perguntasse eu diria com convicção que não tinha intenção alguma de me atrasar.
- Você queria ficar mais tempo na internet, vamos, confesse!
- Não, não!!
- Queria sim!
- Mas eu queria chegar na hora!
- Confessa logo, o papo estava bom e você não quis olhar no relógio!
- Eu queria chegar na hora, você é que queria se atrasar!
- Certo, certo. Eu admito isso. Mas você, meu caro, sou eu.
- Eu nunca sei se eu fico feliz ou irritado quando você diz isso.
- Sabe sim.
- Chega!!
Passei a discutir mais comigo mesmo, tentando antecipar a visão sobre as minhas intenções ocultas a mim. E ao discutir comigo, surgiu outro problema: eu sempre tinha razão e ao mesmo tempo nunca tinha. Em compensação, eu comecei a ficar mais matreiro:
- Eu sei que você sabe que eu sei, que você sabe que eu sei o que eu sei.
- Certo, certo. Mas isso não interessa.
- Ah, não?
- Claro que não. O que interessa é o que você vai fazer com o que você sabe.
- Pois é. Tens razão. Mas isso eu ainda não sei.
- É, isso eu já sabia.
Essa mania de já saber tudo e não saber de nada me dava nos nervos. Ou não.
- Eu sei o que você está pensando.
- Claro que sabe. Você sou eu. Será que eu sempre tenho que te lembrar isso?
- Não me enrola. To te sacando, cara.
- Como é??
- É isso aí. To te sacando, cara.
- Ora, cale-se.
- Não muda de assunto não. Eu já te saquei.
- Pronto. Endoidou de vez.

Friday, October 12, 2007

Pássaro

Quando retumbava no céu
o canto repetido,

o ar era o pássaro.

pássaro

Mas distraído,
senti que passavam ao léu,
vistas do alto do monte.

E ao raiar o dia,
era um salto!!

Por sobre a linha do horizonte.

Passareavam as sinfonias das manhãs,
e as vistas amanheciam sãs.

Monday, September 03, 2007

Bem-te-vi

Em seis dias
vimos em nós
as horas mais tardias,
ainda que sós.

Na sétima aurora
não soube de ti
e cada um foi embora
seguir sua andança.

Agora é só me distrair
que me vem a lembrança:
Bem-te-vi! Bem-te-vi!!
Bem-te-vi! Bem-te-vi!!

Thursday, August 23, 2007

Barulhentos

Não interessa se você é católico ortodoxo, católico carismático, protestante, pentecostal, evangélico, testemunha de Jeová, batizado, comungado, pastor, padre, bispo, papa ou qualquer outra autoridade religiosa cristã. Se você é barulhento, eu sou obrigado a ouvir as suas músicas, as suas pregações e os seus posicionamentos religiosos contra a minha vontade. Mas eu vos perdôo, porque não sabeis o que fazeis. Se soubesses, não o faríeis, claro. Mas vós o fazeis. Enfim. Vós não me amais.
Tudo bem, porque eu vos amo. Como diz o poeta brasiliense, é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Porque se você parar pra pensar, vai imaginar aquele barulho todo acontecendo de novo no final de semana que vem e pode acabar pensando em fazer algo pouco cristão. Mas o fato de eu ser assim, fraternal, iluminado e espiritualmente superior, não significa que eu aprove vossa conduta barulhenta. Até onde eu sei, Jesus não gritava nos ouvidos do próximo. Aliás, suas palavras certamente não teriam o mesmo efeito:
- AMAI AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO!!!!!!!!!!!
Os discípulos entreolham-se.
- Por que ele está gritando?
- Mestre, por que gritas?
- E A DEUS ACIMA DE TODAS AS COISAS!!!!!!!!!!!!! ESTÁS OUVINDO?!?!?!? A DEUS ACIMA DE TODAS AS COISAS!!!!!!!!!!!!!!
É difícil encontrar novas intersecções religiosas entre as dissidências cristãs. No entanto, hoje em dia há os “barulhentos” e qualquer dissidência cristã pode se adequar à prática.
- Eu sou evangélico da pastoral.
- Ahn. Bom, eu sou católico ortodoxo.
- Sei...
Fica aquele clima. Mas...
- Mas eu sou católico ortodoxo barulhento.
- Você é barulhento!?!?
- Sim!!
- Eu também!!!
E os dois saem abraçados às gargalhadas, à procura de um microfone ou amplificador.
A origem dos “barulhentos” pode ser explicada pela simples observação da história. São resultado das dificuldades dos primeiros pregadores que, defronte ao aumento de fiéis, precisavam gritar para serem ouvidos pelas multidões. Ou talvez façam parte dos cristãos mais remotos que eram obrigados a se esconder e realizar suas cerimônias em catacumbas: agora, berram nos microfones só por vingança.
Os barulhentos são inovadores. “Não roubarás”, por exemplo, tem lá suas exceções: é permitido roubar o silêncio e a paz alheia, uma vez que, não há como saber se o silêncio do próximo significa que está sendo iluminado por um anjo ou que está mergulhando nas trevas, tentado pelo demônio. Na dúvida, melhor ser barulhento e salvar mais uma alma.
- Irmão, estou tentando pensar um pouco. Que barulheira é essa?
- É que esse silêncio todo me deixou preocupado!
- Mas foram só cinco minutos!
- Você devia se envergonhar!!!
- Mas foram só cinco minutos!!
- Tá bom, eu não conto pra ninguém.
Mas não se trata de muitos ou poucos minutos. Os barulhentos devem estar em constante alerta. E por conseqüência, todos à sua volta também. Afinal, até onde se sabe, “não matarás” se refere ao próximo e não ao silêncio. E também não há nenhum mandamento dizendo “não incomodarás”. Mas há um problema: o silêncio é imortal. Toda vez que cessa o barulho, ele reaparece, tão silencioso quanto antes. É preciso vigiar. E dormir com a televisão no volume máximo, só pra garantir.

Thursday, July 05, 2007

Autêntico

Ele sempre tinha reações inesperadamente autênticas.
- Será que o senhor poderia me dar uma informação...
- Não.
Só depois de dizer mais algumas palavras sobre a informação que queriam é que as pessoas entendiam, e assimilando a primeira resposta, confusas, perguntavam:
- Não?
Ao que ele confirmava:
- Não.
Já acostumado com a confusão mental que causava a resposta, ele acrescentava:
- Estou dizendo que não posso lhe dar a informação... Não que você vá ficar sem ela. Você pode perguntar pra outra pessoa.
Teve alguns problemas na escola. Dele saíam respostas obscuras, revolucionárias, infames, desconexas e, algumas vezes, triviais. Ou tudo isso junto:
- A professora me pergunta quando morreu Tiradentes. Pois eu, professora, lhe pergunto quando ele nasceu, onde foi criado e se foi feliz.
Quando chegou a época de fazer vestibular, alguns amigos sustentavam a idéia de que suas respostas alternavam entre sarcásticas e sérias. Outros diziam que era impossível distinguir.
- Vai fazer vestibular pra que?
- Pra testar a minha inteligência. Inclusive, sonhei com isso ontem.
Ele sempre parava para explicar a quem fosse mais insistente que, o que ele queria mesmo era passar pra Psicologia. E depois, é claro, queria conseguir transferência para Sociologia ou Engenharia Civil. Quando percebia a confusão instalada na expressão das pessoas, ele dizia:
- É que assim eu sei que vai ser divertido. Mesmo.
Anos depois, numa entrevista de emprego, seu entrevistador faz a primeira pergunta padrão:
- Por que o senhor quer este emprego?
- Sabe, você tem razão. Pra quê? E talvez você devesse repensar isso também. Você não me parece muito feliz.
Na fila do banco, quando chegava a vez dele, dizia alguma coisa à moça do caixa e voltava pro final da fila. Depois de umas duas horas, foi abordado pelo segurança:
- Com licença... o senhor não pode ficar aqui...
- O senhor é que não pode, esta fila é para clientes.
Levado pelo braço, na porta ele grita para a moça do caixa:
- Amanhã eu volto pra conversarmos com mais calma!!
A vertente dos amigos que considerava suas respostas oscilantes entre sarcásticas e sérias, não teve dúvidas. Aquilo era um gesto romântico. A vertente que dizia ser impossível distinguir entre uma coisa e outra, resolveu concordar. Afinal, era isso ou ser obrigado a classificar o caso como patológico.
No dia seguinte ele estava lá, cumprimentou o segurança e pediu desculpas. Não pela conduta pouco convencional, é claro. O motivo da retratação era ter pressuposto que o segurança não era cliente do banco. Dito isso, voltou pra fila, conseguiu o telefone da moça. Não o número, o aparelho. Disse que precisava muito ligar pra ele mesmo, de outro celular. Mais à noite, depois do serviço, ela atende ao telefone e ele vai logo dizendo:
- Estou retornando a minha ligação. Eu gostaria de falar comigo. Mas eu ainda não estou aí, eu sei. Onde você está?
Depois de vê-lo com a namorada, uns estavam certos de que ele era um romântico incompreendido, outros diziam que ele era só louco mesmo, outros afirmavam que suas reações eram excêntricas e que ele não tinha mudado nada desde a época do vestibular.
A namorada era simpática, um tanto reservada, parecia não se incomodar com o jeito dele e não comentava nada durante as conversas em que tentavam decifrá-lo. Todo aquele silêncio da moça do caixa só tornava o assunto mais intrigante e deixava os amigos sem jeito de perguntar o que ela pensava afinal. Até o dia em que alguém tomou coragem pra tentar satisfazer a curiosidade do pessoal:
- Escuta, posso te fazer uma pergunta?
E a moça:
- Não.
* Então pessoal, pra quem lê os poemas, "Tu que lês" é uma poesia que termina com vírgula pra que possa ser lida de baixo pra cima também. Eu ia esperar mais pra dar a dica mas devo ficar sem acesso à internet por um tempo. Mas até o dia 17 ou 18 estou de volta!
Abraços!

Sunday, July 01, 2007

Tu que lês

Eu senti tua vontade.
Tu que lês,
que quer uma dor
ou uma idéia
de amor.
Ou só uma rima
Ou ausência dela.

Queres uma visão da vista
da minha janela.
Ou da vida
que é bela

eu sinto tua ironia,
tua distância…
Não vás, fica aqui.
Lê.
Não é minha vista, bela ou feia,
o que te faz sorrir,

Tu que lês,
só pra terminar e ter lido;
Lê outra vez,
Lê como do tronco se sobe às folhas.
E lá sim, avista do alto:
Mas antes escala.
a poesia, montanhosa.
O final é começo o começo é fim,
Tu que lês alcanças o céu
Assim,

Friday, June 29, 2007

Escrever


Escrever. Inscrição. Escrita. Escritura. Excreção. Não, excreção não. Vejamos, vejamos… escre… escrevência. Não. Escreverecência. Escrevevinência. Não. Escreverar? Não. Escrevorear. Também não. Escriturar… escre… escrivão, escrevena, escrevina… não, não, não! Calma. Escrever a essência. Escreveressência. Escrevessência. Excrescência. Não, não! Saco! Como encontrar, como encontrar o detalhe, a beleza de um traço, a tradução da literária alma do escrever? Aquilo que há no escritor, que é a essência das idéias e das obras geniais que um dia escreveram e que um dia escreverão?
Escrever sobre o escrever… Talvez o escrever sobre o não escrever? Não, acaba dando no mesmo. Pense, pense. Devo trazer o talento afiado do escritor. Devo trazer o caminho das palavras que juntas se descobrirão em uma frase. Como se fossem as pétalas nunca ainda abertas e que pela primeira vez sentem o todo além de si mesmas, e formam a flor solitária na estrada de terra que nos leva cerrado adentro. Não… Quase deu certo. Essa coisa de flor, já usaram muito. Preciso da essência, do centro, da literariedade. Dos bastidores das palavras, da cola, da ilógica emocional que as mantém juntas no ensaio deturpador da utopia que é a perfeição. Preciso da escrefeição. Não, escrefeição não.
Vamos com calma. Vamos para além, para além da dialética. Isso. Vamos para a dialêntica... Dialênica. Dialêntida. Não. Para a diaélica, a diaéltica, a dialéltica,
além da dialética complexa... a dialéxica!! Não, dialéxica, não. Droga, revoltemo-nos!! Deixemos a superficialidade!! Vamos ao sacerdócio do palavrear dialérico!! O sacerdotismo dialírico, o sacerdotar dialérgico!! Não!! Dialérgico, não. Calma lá. Vamos por partes. Precisamos chegar ao cerne. À origem, ao início do sacerdócio. O sacerdocismo, o sacerdotélico... sacerdo... sacerdotísico. Não, não... Sacerdocínio, sacerdocídio, sacerdocínico?!? Não, não!!!!!!
Calma. Simplicidade. Vamos lá. Para simplificar, é só falar em voz alta. Não pense, fale. Tenho que descrever o universo das palavras e as distâncias dos planetas em que as palavras vivem e se desenvolvem, as vidas em que a mente do escritor viaja livremente em busca de frases, músicas, poesias e filosofias, traduzidas para várias dimensões de paisagens diversas.
É, mas agora com a cabeça cansada não dá, outra hora, quem sabe. Sacerdocírico... sacerdocíclico? Não. Sacerdocíclico, não.

Tuesday, May 29, 2007

Cor da manhã

Nos firmamentos do teu caminho
o fogo que queima sozinho
dança com os azuis teus.
E quando eu vi a tua luz,
acendi os castanhos meus,

buscando as vistas ensolaradas.
E as manhãs,
são castanho-azuladas.

Wednesday, May 16, 2007

Sobre o "kê"

Eu estava sem o meu “kê”. Não é uma metáfora sobre a minha inspiração, ou sobre o meu jeito de escrever. A minha letra, a minha tecla “kê” foi perdendo contato, talvez comigo, talvez com ela mesma e sem muita explicação, parou de funcionar. E eu kerendo escrever uma crônica, não esta, mas outra, ke precisava muito ke o meu “kê” fosse simplesmente o “kê” ke ele era antes: um “o” com uma perninha pra baixo, à direita. Mas já ke está com defeito, pensei: fazer o kê??
Sempre soube ke a gente dá mais valor à perna kuando tem ke engessar. O violão sem uma corda, parece ke não é mais o mesmo instrumento. Mas nunca pensei ke fosse sentir tanta falta do “kê”. Não dá pra dizer as mesmas coisas sem o “kê”. Não dá pra escrever uma frase kualker sem se preocupar com isso. “Kualker”, por exemplo, parece um termo alemão para cerveja ruim.
Imagine só, passar por um período küinküenal, sem o “kê”? “Küinküenal” já é difícil com o “kê”, sem ele é como se fosse o nome de um grupo indígena, tão selvagem ke só é visto de cinco em cinco anos. O “kero-kero” não voa sem os seus “kês”, parece nome de bombom. “Kiçá” pode ser uma fruta, talvez parente do kiwi. E outra: ninguém te leva a sério se você diz “eu kero”. Eu “kero” só serve pra balinhas e chicletes. Kiçá um sorvete de kiwi.
Enfim! Ker keira, ker não keira, o “kê” faz falta: mas não há propriamente saudades, tampouco nostalgia pelo “kê”. O problema, na verdade, é essa ausência disfarçada de “k”. É como se o “k” fosse um “kê” de má kualidade. Kem dera a kestão fosse mais simples e eu apenas eskecesse isso. Só ke acabo recebendo keixas sobre o “k” no lugar do “kê” e não posso kitar a dívida de “kês” trocando-os por uns “kás”, ou por kualker outro símbolo adekuado. Por ke um “kê” é um “kê” e eu nunca tinha percebido a importância disso.
Se o “kê” não volta, eu me recuso a comer keijo. Tenho a forte impressão de ke “keijo”, assim sem o “kê”, deve fazer mal à saúde. E enkuanto o “kê” não encontra mais a sua kerência aki, neste teclado kebrado, eu tento me convencer de ke eu kero, sim, eu kero comprar um teclado novo, o kuanto antes. Hoje mesmo, eu kuase acreditei.

Wednesday, April 11, 2007

Partitura

Ela não disse nada.
Ele também não.
Mas os olhos se olharam,
e cantaram à primeira vista
a música orquestrada
para silêncio e respiração.

Monday, March 19, 2007

Às compras

Afinal o que poderia ser tão intrigante numa compra dentro de um supermercado? Nada, você pensa. Mas imagine duas pessoas tentando comprar alguma coisa, por exemplo, um chocolate.
– Olha esse chocolate.
– Tá barato.
– Muito barato.
– Vou levar uns nove ou dez.
– Isso.
Na compra normal, nada de muito novo, mas talvez esse seja o problema. Ou não.
– Inacreditável. O preço desse chocolate tem a perseverança dos enfraquecidos, a inveja dos impuros e o desgaste carcomido de idéias irascíveis.
– Quê?
– O preço. O preço desse chocolate é uma rara afronta a esse mundo material em que propedêuticas se isolam, mais cedo ou mais tarde, de sua fonte primeira e original.
– Então é melhor não levar?
– Ao contrário, devemos levar tantos quantos pudermos.
– Legal. Vou levar esses tantos quantos aqui.
Contudo, e se colocássemos entre os dois, menos distância e mais afinidade?
– Inacreditável. O preço desse chocolate tem a perseverança dos enfraquecidos, a inveja dos impuros e o desgaste carcomido de uma idéia irascível.
– Quê?
– O preço, olha o preço.
– Nossa! Isso é praticamente uma afronta a esse nosso mundo materialista e suas arcaicas definições sócio-econômicas.
– Realmente, uma afronta. Não só a esse mundo materialista, mas a esse mundo onde propedêuticas acabam se isolando de suas fontes primeiras e originais, o que torna o desenvolvimento científico totalmente incompleto e limitado hoje em dia.
– Exatamente! Considerando a ética e a moral de uma compra como a nossa, quantos chocolates você acha que deveríamos levar?
– No momento atual não podemos fazer nada. Nem ética nem moralmente.
– Por quê?
– Esqueci meu cartão.
Tudo bem. Ainda pode dar certo. Tentemos uma afinidade regular e uma distância bastante reduzida: um casal.
– Olha amor!
– O que, amor?
– Olha esse chocolate!
– Sim.
– Você não gosta?
– Do quê?
– Desse chocolate, amor!
– Ahn. Gosto, gosto.
– Amor!
– Que foi, amor??
– O chocolate! Tá super barato, amor!
– Ahn! Então leva, amor. Leva quantos você quiser.
– Quantos “eu” quiser? Então você não quer. É isso. Você não quer. Se você não quer então é melhor não levar.
Ele faz um certo silêncio, mas ela insiste:
– Porque eu não vou ficar comendo esse monte de chocolate sozinha pra depois você ficar me chamando de gorda.
– Amor, leva o chocolate…
– Não! Não quero mais essa porcaria.
Afinal, qual é o problema com uma simples compra de chocolate no supermercado? Tudo parece convencional, trivial e, o que parece ser o mais inevitável, completamente sem sentido. Não podemos desistir. E se fosse um casal “gay”?
– Hum…
– Que foi, fofa?
– Olha: eu simplesmente a-do-rei o preço desse chocolate.
– Ai, sério?
– A-DO-REI. Quero levar todos!
– Olha: tô totalmente desconfiada.
– Ai, sério?
– Desconfiadíssima.
– Por que, fofa?
– Não sei fofa, mas chocolate nesse preço? Deve ser horroroso.
Agora chega. Alguém tem que conseguir comprar esse maldito chocolate. Precisamos de duas pessoas experientes com compras, supermercados, chocolates, preços, promoções e coisas do gênero. Precisamos daquelas pessoas a quem sabemos poder confiar quase que cegamente uma compra de supermercado. Nossas mães e avós. E suas amigas. Mesmo porque, mães e avós são aquelas pessoas estranhas que por alguma razão incompreensível, até gostam de supermercados. Conhecem os gostos de cada membro da família. E mesmo se não conhecem, quem é que vai discutir com elas?
Senão vejamos. Duas mães no supermercado. E uma ou duas avós, só para garantir.
- Nossa, o preço desse chocolate ta ótimo. Eu devia levar pro Fernandinho, ele adora.
- Que maravilha, vou levar também. O aniversário dos meninos está vindo aí.
A avó já foi logo pegando o chocolate e verificando a embalagem:
- Não tem “light”?
A outra avó estava distraída. Chegou a comentar de uma geléia natural, sem conservantes. E a mãe do Fernandinho, com duas caixas de chocolates na mão, teve que perguntar:
- Por que “light”? Você também quer?
- E tem de pêssego! É uma geléia de pêssego sem açúcar e sem conservantes...
- Eu não quero nada. Mas o Fernandinho está muito gordo. Você não viu? A calça que eu dei pra ele no natal já não serve mais.
- Pois é. Sabe que os meninos também estão ficando muito gordos?
- É natural, feita aqui perto, numa área rural dessas. Não tem conservantes. Nem açúcar. E tem de amora, de goiaba e de pêssego.
A mãe do Fernandinho concordou.
- Então vamos levar o “light”.
- De pêssego, sem açúcar e sem conservantes! Sem conservantes!!
- Acho que não tem “light”.
Não tinha o “light”, claro. O Fernandinho ficou sem o chocolate e deve ter comido brigadeiros na festa dos meninos. E talvez você até esteja se perguntando: mas e a geléia de pêssego, goiaba e amora, sem açúcar e sem conservantes??
Mas aí já é outra crônica.

Tuesday, February 06, 2007

Palavras à vista

Há palavras,
nos olhos que são.
E os olhos dizem
a pureza das palavras que não.

Há verdade
nos silêncios de então
e há saudade,
da palavra que vê
os silêncios que não.

Monday, January 15, 2007

Ornitorrinco

Eles estavam se casando e o padre começou aquela parte, advertiu que se alguém tivesse algo contra a união do casal que falasse agora ou que fosse catar coquinhos para sempre. E eu me assustei de repente e gritei “um ornitorrinco!!” apontando para o chão e todos olharam para trás dos noivos, em busca de um ornitorrinco. E como não o acharam, voltaram-se para mim e eu estava nu. Aí eu acordei, claro.
Ainda acordando e me recuperando do susto, arregalei os olhos quando ouvi alguém gritar:
- Um ornitorrinco!!!
Levantei correndo e fui ver o que era. Na sala, o pessoal jogava algum jogo de adivinhação com mímicas. A sonolência foi mais forte do que a minha curiosidade sobre como teria sido a mímica para ornitorrinco. Voltei a dormir.
Sonhando de novo, eles estavam lá. Estavam se casando e o padre advertiu que se alguém tivesse algo contra a união do casal, que falasse agora ou que contasse depois, só pra ele, pra ele não ficar curioso. E eu comecei a fazer mímica e sinais desesperados para os convidados da primeira fileira. Todos se voltaram para mim e eu estava com uma roupa de ornitorrinco. A roupa era quase uma sauna particular e o bico estava com defeito e não abria mais. Eu não conseguia falar. Foi quando acordei de novo, assustado e sufocado pelo edredom. Fui logo abrir as janelas para amenizar o calor, lavei o rosto, liguei o ventilador, bebi água. Livrei-me do edredom.
Dormindo de novo, o casal estava lá. Havia seguranças nas portas da igreja com ordem de atirar pra matar se vissem um ornitorrinco. Ou alguém vestido como tal. O padre estava naquela parte, advertindo que se tivessem algo contra a união do casal, que deviam se envergonhar, que isso não era hora de dizer uma coisa dessas e que Deus castiga.
Em seguida, toca meu celular. Todos me olham como se eu fosse, sei lá, um ornitorrinco. Eu atendo.
- Alô?
- Oi. Aqui é o Ornitorrinco.
- Si-sim?
- Deposite um milhão de dólares numa conta na Suíça e eu lhe devolvo as alianças.
Levantei assustado pela terceira vez e fui verificar se as alianças estavam na gaveta. Não estavam. Antes de eu ficar mais confuso, toca o telefone.
- Alô!
- Opa. Tudo bem?
Senti-me paralisado. Era a voz do Ornitorrinco.
-Si-sim??
- Rapaz, desculpa te ligar tão cedo. Esqueceste as alianças aqui em casa.
Era meu primo. Conversamos um pouco. Ele não queria um milhão de dólares pelas alianças. O que ele queria era muito mais caro:
- Tu passas aqui antes, pega as alianças e tenta ficar mais calmo, certo?