Monday, March 19, 2007

Às compras

Afinal o que poderia ser tão intrigante numa compra dentro de um supermercado? Nada, você pensa. Mas imagine duas pessoas tentando comprar alguma coisa, por exemplo, um chocolate.
– Olha esse chocolate.
– Tá barato.
– Muito barato.
– Vou levar uns nove ou dez.
– Isso.
Na compra normal, nada de muito novo, mas talvez esse seja o problema. Ou não.
– Inacreditável. O preço desse chocolate tem a perseverança dos enfraquecidos, a inveja dos impuros e o desgaste carcomido de idéias irascíveis.
– Quê?
– O preço. O preço desse chocolate é uma rara afronta a esse mundo material em que propedêuticas se isolam, mais cedo ou mais tarde, de sua fonte primeira e original.
– Então é melhor não levar?
– Ao contrário, devemos levar tantos quantos pudermos.
– Legal. Vou levar esses tantos quantos aqui.
Contudo, e se colocássemos entre os dois, menos distância e mais afinidade?
– Inacreditável. O preço desse chocolate tem a perseverança dos enfraquecidos, a inveja dos impuros e o desgaste carcomido de uma idéia irascível.
– Quê?
– O preço, olha o preço.
– Nossa! Isso é praticamente uma afronta a esse nosso mundo materialista e suas arcaicas definições sócio-econômicas.
– Realmente, uma afronta. Não só a esse mundo materialista, mas a esse mundo onde propedêuticas acabam se isolando de suas fontes primeiras e originais, o que torna o desenvolvimento científico totalmente incompleto e limitado hoje em dia.
– Exatamente! Considerando a ética e a moral de uma compra como a nossa, quantos chocolates você acha que deveríamos levar?
– No momento atual não podemos fazer nada. Nem ética nem moralmente.
– Por quê?
– Esqueci meu cartão.
Tudo bem. Ainda pode dar certo. Tentemos uma afinidade regular e uma distância bastante reduzida: um casal.
– Olha amor!
– O que, amor?
– Olha esse chocolate!
– Sim.
– Você não gosta?
– Do quê?
– Desse chocolate, amor!
– Ahn. Gosto, gosto.
– Amor!
– Que foi, amor??
– O chocolate! Tá super barato, amor!
– Ahn! Então leva, amor. Leva quantos você quiser.
– Quantos “eu” quiser? Então você não quer. É isso. Você não quer. Se você não quer então é melhor não levar.
Ele faz um certo silêncio, mas ela insiste:
– Porque eu não vou ficar comendo esse monte de chocolate sozinha pra depois você ficar me chamando de gorda.
– Amor, leva o chocolate…
– Não! Não quero mais essa porcaria.
Afinal, qual é o problema com uma simples compra de chocolate no supermercado? Tudo parece convencional, trivial e, o que parece ser o mais inevitável, completamente sem sentido. Não podemos desistir. E se fosse um casal “gay”?
– Hum…
– Que foi, fofa?
– Olha: eu simplesmente a-do-rei o preço desse chocolate.
– Ai, sério?
– A-DO-REI. Quero levar todos!
– Olha: tô totalmente desconfiada.
– Ai, sério?
– Desconfiadíssima.
– Por que, fofa?
– Não sei fofa, mas chocolate nesse preço? Deve ser horroroso.
Agora chega. Alguém tem que conseguir comprar esse maldito chocolate. Precisamos de duas pessoas experientes com compras, supermercados, chocolates, preços, promoções e coisas do gênero. Precisamos daquelas pessoas a quem sabemos poder confiar quase que cegamente uma compra de supermercado. Nossas mães e avós. E suas amigas. Mesmo porque, mães e avós são aquelas pessoas estranhas que por alguma razão incompreensível, até gostam de supermercados. Conhecem os gostos de cada membro da família. E mesmo se não conhecem, quem é que vai discutir com elas?
Senão vejamos. Duas mães no supermercado. E uma ou duas avós, só para garantir.
- Nossa, o preço desse chocolate ta ótimo. Eu devia levar pro Fernandinho, ele adora.
- Que maravilha, vou levar também. O aniversário dos meninos está vindo aí.
A avó já foi logo pegando o chocolate e verificando a embalagem:
- Não tem “light”?
A outra avó estava distraída. Chegou a comentar de uma geléia natural, sem conservantes. E a mãe do Fernandinho, com duas caixas de chocolates na mão, teve que perguntar:
- Por que “light”? Você também quer?
- E tem de pêssego! É uma geléia de pêssego sem açúcar e sem conservantes...
- Eu não quero nada. Mas o Fernandinho está muito gordo. Você não viu? A calça que eu dei pra ele no natal já não serve mais.
- Pois é. Sabe que os meninos também estão ficando muito gordos?
- É natural, feita aqui perto, numa área rural dessas. Não tem conservantes. Nem açúcar. E tem de amora, de goiaba e de pêssego.
A mãe do Fernandinho concordou.
- Então vamos levar o “light”.
- De pêssego, sem açúcar e sem conservantes! Sem conservantes!!
- Acho que não tem “light”.
Não tinha o “light”, claro. O Fernandinho ficou sem o chocolate e deve ter comido brigadeiros na festa dos meninos. E talvez você até esteja se perguntando: mas e a geléia de pêssego, goiaba e amora, sem açúcar e sem conservantes??
Mas aí já é outra crônica.