Wednesday, June 21, 2006

O velho de São Jorge

Havia um velho lá de São Jorge que dizia que ia morrer no chão, “porque é pra onde se volta”. Dizia ele, sempre, no final de cada frase sua. Às vezes, pra quem perguntasse, acrescentava, solene: “ora, essa é, implicitamente, a segunda certeza que, na verdade, é a segunda certeza; na verdade, com certeza que, é a segunda certeza, que se tem, por aí. Aí, nessa vida. Não é?” O velho, mais bêbado a cada palavra, esperava a próxima pergunta e solenizava a resposta triunfal, uma vez que todos perguntavam: “e a primeira?” respondia: “a primeira, como já dizia minha velha mãe, que Deus a tenha, a primeira certeza, na verdade é a de que, com certeza, como dizia minha velha mãe, que Deus a tenha, que Deus a tenha, vou morrer.” E não raro era o velho esbanjar sua erudição trocando “vou morrer” por “morrerei”, ou até, numa ocasião especial, “morrer-me-ei”. Ocasião especial era qualquer garota atraente que lhe desse atenção, sem que com isso lhe arranjasse uns trocados. Quando recebia esmolas, indignava-se, e bradava contra a ditadura enquanto guardava os centavos no bolso esquerdo, porque o direito estava furado desde antes do golpe de sessenta e quatro. Entretanto, ao invés de maltrapilho, mantinha aparência razoável que, ainda que razoável, não tirava-lhe o ar de sua própria peculiaridade:
- O rapaz tão estimado, desce mais uma, que eu vou morrer no chão, que é pra onde se volta. Não é?
- Mais morto e mais no chão você não fica. Basta por hoje. Essa foi a última.
- Não foi não!
E nisso, começava um discurso:
- Achais que poderes podares minhas liberdades. Queres matares-me por dentro de mim mesmo. Morrerei no chão, que é pra onde se volta! Tá me ouvindo? Estais a me ouvirdes? Eu pago-te sempre o que, devendo a ti, devo-te.
Assim disse o velho, enfiando a mão no bolso direito da calça de linho. E acrescentou:
- Morrer-me-ei no chão, que é pra onde voltar-me-ei.
Era o velho “tão antigo quanto o sexo”, assim dizia ele. Alguns diziam que era mais velho que Raul Seixas, que nascera “há dez mil anos atrás”. Ninguém sabia ao certo quantos anos tinha, nem ele mesmo, até porque lhe falhava a memória depois de tantos dias alcoolizados.
Deitava-se encharcado e secando ao sol, na única calçada da cidade que ficava aos redores donde ele bebia para os santos. Para os santos sim, pois que eram a única razão de sua bebedeira. Afinal, para cada dose havia um santo homenageado. E é claro que nunca lhe falhava a memória pra lembrar nomes e mais nomes de santos que ninguém sabia que existiam. Dizia ele que no céu, aonde já estivera várias vezes, ninguém pagava pela bebida, desde que servisse uma ou outra para os santos.
- Olha, digo uma coisa: santo nenhum, entendeu? Santo nenhum. Olha, não tem um. Não tem um santo que recusa bebida. Não tem. Pode procurar. Pode procurar que não encontra. Não encontra. Digo porque eu sei. Vou mentir pra quê?
De sábado em sábado, ou de domingo em domingo, alguém acabava ouvindo sobre a cidadezinha mais próxima onde havia uma queda d’água de nome “Pedra Azul”. E visitava São Jorge. E querendo ou não, gostando ou não, acabavam conhecendo e ouvindo o velho. A verdade é que todos iam de uma forma ou outra se divertindo, e curiosamente perguntavam:
- Santo nenhum?
Ao que o Velho não se intimidava:
- NENHUM.
E insistiam:
- Tem certeza?
- Certeza? Digo porque eu sei. Olha: não há santo desse mundo velho que tenha subido lá em cima pra recusar bebida. Digo lá em cima, porque aqui embaixo eles não bebem.
- Aqui embaixo eles não bebem?
- De jeito nenhum.
- Por quê?
- Porque não pode.
- E por quê não pode?
- Você não sabe? Santo não bebe em serviço. Quando tem que descer aqui eles vão logo tomando uma extra lá em cima. Santo não bebe em serviço. Não tem um. Pode procurar.

2 comments:

Anonymous said...

Desde muito pequena tenho a certeza de que morrerei velha, louca e sozinha. Até que, no começo desse ano, conheci São Jorge... E decidi que é pra lá que vou fugir para ser louca, sozinha e nunca ter que morrer.

Anonymous said...

Acho que foi culpa do beija-flor...

http://www.alefelix.com.br/arquivo/2006/04/contatos_imediatos.html

http://www.flickr.com/photos/imagetica/page4/

;-)