Monday, February 25, 2008

Írio

Írio gostava de fazer nada. Mas não era um nada qualquer. Para Írio, encontrar com os amigos no bar sem hora pra voltar já era fazer alguma coisa. Aliás, muita coisa. Írio detestava quando diziam que iam ligar para ele pra “marcar de sair e fazer alguma coisa”. Era um exagero aquilo. Além de sair ainda tinham que fazer alguma coisa. Incomodava-se constantemente com esse tipo de atitude. E fazia questão de deixar claro que não simpatizava. Afinal, ele tinha mais o que não fazer.
Írio era verdadeiramente um amante da “não-atividade”, um apaixonado pelo “fazer nada”. Estava sempre incomodado porque as pessoas eram umas desocupadas, viviam interrompendo o nada que ele estava fazendo. Por isso fazia questão de ressaltar que ninguém entende nada de nada e que a grande maioria não saberia reconhecer o nada se o visse, mesmo que estivesse debaixo do próprio nariz. Quer dizer, nada tem em todo o lugar, as pessoas não vêem porque não querem, porque não querem nem saber de nada.
Mas o fato é que ele era obrigado a conviver com todos aqueles incautos e incivilizados, imersos em ignorância: e que viviam como se o nada não existisse. Quer dizer, como se o nada não fosse nada.
- Vamos sair um pouco, Írio. Você não está fazendo nada...
- Estou sim. E você está me interrompendo.
- Mas... o que você está fazendo?
- NADA!! Quantas vezes tenho que repetir?!?
Assim que entrou na faculdade, Írio ficou viciado em trabalhar como fiscal nos vestibulares. Fazia-se muito pouco no começo das provas e minutos depois havia horas de nada pra fazer, plenas de nada inerente. Melhor ainda era quando tinha que esperar os candidatos que pediam tempo adicional. Írio freqüentemente se referia a eles como “meus preferidos”.
Em pouco tempo, profissionalizou-se e tornou-se um autônomo especializado em fiscalização de provas. Agendava sua semana pelas datas de concursos, exames psicotécnicos ou qualquer tipo de avaliação.
Desde que houvesse bastante nada pra fazer, Írio não se importava com o dinheiro, apesar de já estar cansado de ouvir da sua família o tempo todo que “nada não enche barriga” e que nada não leva a nada. Mas, a verdade seja dita: nada convencia Írio. Selecionava cuidadosamente seus trabalhos pelo tipo de nada que proporcionavam. Írio era quase um especialista em nada, sabia valorizar o nada e executá-lo como poucos. Nada lhe dava, na verdade, mais satisfação. Não havia nada que não gostasse e sempre buscava um nada que fosse nada mesmo. Um nada que, a princípio, fosse nada, mas que no fundo, intimamente, fosse nada também. Um nada simples, verdadeiro, íntegro,... nada desses nadas que não valem nada. Quer dizer, um nada que valesse a pena.
Havia poucos horários em que não fazia nada. Mesmo quando não estava trabalhando, Írio mantinha-se sempre muito ocupado fazendo nada em casa. Filosofava sobre o nada. E explicava que havia um ponto ideal para “o fazer do nada”, que era quando a noção de tempo começava a desaparecer.
- O ponto ideal, é quando você já não sabe mais se ontem foi ontem mesmo e se hoje ainda é o hoje de ontem, ou se, na verdade, já é o amanhã de hoje, ou seja, o hoje que teria então, se tornado ontem.
- O que???
- Nada, nada.
Alguns anos se passaram e Írio já não se incomodava tanto com a dificuldade que as pessoas tinham em entendê-lo. Írio era feliz, ficava satisfeito com nada. Com algum esforço encontrava bastante nada no mercado de trabalho. Além disso, aprendera a tirar lucro do nada. Era convidado para dar palestras sobre nada, uma área pouco explorada até então.
Nas férias, costumava freqüentar salas de espera de consultórios. Alguns pacientes o consideravam um exemplo, pois nunca tinham visto alguém numa sala de espera com tamanha serenidade e paz de espírito. Outros o invejavam pela mesma razão e desconfiavam dele e de toda aquela tranqüilidade aparente. Quando perguntavam a ele o que ele realmente estava fazendo ali, ele respondia, honestamente:
- Nada.
Mas ninguém acreditava nele. Não adiantava explicar.

4 comments:

J. said...

Gostei muito da história do Írio. Parabéns!

Unknown said...

Lembrei-me de The State tha I am in (Tigermilk - 1996). Um grande, suposto e elevado sendo de nada o que fazer. Aliás, muita coisa.

=)

Engraçado como sempre 'tira as letras das minhas teclas'.

Beijo!

Anonymous said...

Demais, verdadeiro cronista.
Não sei de seus demais textos, este é o primeiro que vejo, mas é verdadeiramente qualidade profissional. Espero que seu livro não demore mais do que seus anos podem esperar...

boa sorte!

Anonymous said...

:)