Tuesday, October 28, 2008

Hermenegildo


É óbvio que se você é o Hermenegildo, piadas com seu nome e afins já deixaram de ser interessantes há muito tempo. “Hermenegildo” não é engraçado. A maioria das pessoas só não percebeu ainda porque a maioria não se chama Hermenegildo.
Mas receber um nome como Hermenegildo e ter que aturar as situações que surgem por conta disso, não é o único, nem o maior problema do Hermenegildo. A questão é que não é fácil ser a pessoa, a personalidade, o ser humano em si, a individualidade e a peculiaridade cuja alcunha é, por culpa do destino ou de seja lá o que for, Hermenegildo. Isso porque um Hermenegildo não tem muitas opções: ou o indivíduo nunca supera o próprio nome, quer dizer, receberá sempre mais atenção por conta do seu nome peculiar do que pela pessoa que de fato é, ou então “Hermenegildo” será só uma piada de mau gosto da vida: que não passa de uma pequena e, quem sabe, divertida parte de toda uma personalidade, isto é, apenas um detalhe curioso a respeito do grande, do notável, do interessantíssimo e muito, muito bem apessoado, Hermenegildo.
- Como??
- Hermenegildo.
- Ah.
Ser nomeado Hermenegildo é inegavelmente um desafio extra. Se o Hermenegildo fracassa, quer dizer, perde o emprego ou a namorada, investe num negócio que acaba não dando certo ou qualquer outra situação semelhante, a maioria freqüentemente procura pensar positivo porque poderia ser pior, mas acaba por concluir em seguida:
- Ainda por cima o nome do cara era Hermenegildo!
Ou ainda mais fatalista:
- Também, com um nome daqueles, não ia dar certo nunca!
Por outro lado, o Hermenegildo tem a vantagem de conhecer melhor as pessoas. Fica mais fácil separar os imbecis dos decentes e os falsos dos honestos no primeiro momento em que são apresentados. A reação ao ouvir “prazer, Hermenegildo...” com certeza serve como uma avaliação psicológica. Algumas pessoas tendem a repetir o nome em tom de pergunta. Outras tentam disfarçar a surpresa com um notável desembaraço: “posso te chamar de Gil?”. E outras preferem “Menê”, que apesar de também não ser uma ótima solução, evita confundir com algum Gilberto. Contudo, nenhuma personalidade surpreende mais do que a senhora que ouve “Hermenegildo” e não esboça nenhuma reação em especial. É claro que, mais tarde, o psicólogo descobre que a singular senhora se chama Gilda, é casada com o Hermen e, logicamente, tem um filho: o Hermenegildo. Dona Gilda fica menos nervosa porque durante a consulta, o Menê fica trabalhando com o Hermen, que antes era Emerson, como consta na carteira de identidade. O que é uma corruptela estranha, é verdade, mas a questão não é essa, a questão é que o filho dela explode de raiva toda vez que ela o lembra de ir tirar o próprio RG, e Dona Gilda com o coração apertado argumenta: "mas Hermenegildozinho...". E não adianta, ele se irrita e ela não sabe por quê.
É obviamente uma suposição comum. O senso estético ou a perspectiva particular dos pais, aliada à conseqüência inevitável da junção dos nomes “Hermen” com “Gilda”, resultou em Hermenegildo. Tudo bem, acontece. É preciso entender isso, acontece. O que não dá pra entender é quando logo depois de cumprimentar o Hermenegildo, você estende a mão para ser apresentado ao Hermenegildo Júnior. Quando falamos em Hermenegildo Júnior, não sabemos mais com o que estamos lidando. O Hermenegildo foi um acidente, mas Hermenegildo Júnior é um incidente. E perigoso, porque se um Hermenegildo pode chegar a ser um sujeito bastante revoltado, o Hermenegildo Júnior, então, será capaz de qualquer coisa. Para um Hermenegildo Júnior, nomear o filho como uma homenagem ao pai, é o de menos.

Thursday, August 28, 2008

Juvena

Juvena era trabalhadora. Dizia que não era questão de dignidade, era questão de inteligência: quem queria entender a vida e crescer em qualquer direção, tinha que aprender a trabalhar. Dizia isso, enquanto esfregava alguma coisa e esbarrava na vassoura, pela milionésima vez. Era o hábito que não perdia, vivia derrubando a vassoura a cada cinco minutos.
Todos sempre elogiavam a limpeza de Juvena e ela sustentava uma pose característica, orgulhosa. Declarava sua paixão pelo serviço bem-feito. E em seguida, derrubava a vassoura de novo.
As pessoas se incomodavam com a vassoura caindo de cinco em cinco minutos, claro. Mas raramente comentavam, porque a Juvena era um tipo difícil de achar: honesta, trabalhadora, confiável e eficiente. E daí se derrubava a vassoura a cada cinco minutos?
E no caso, “a cada cinco minutos” não era exagero. Juvena tinha tanta energia que por onde passava, parecia que havia pelo menos cinco mulheres limpando, conversando e derrubando vassouras. Além de tudo, Juvena tinha uma iniciativa inteligente, colocava-se ao trabalho sem precisar de muitos direcionamentos e tudo o que pudesse ser além de sua alçada, ela mesma perguntava e descobria. Por isso mesmo, nunca tivera problemas comuns de diaristas e empregadas domésticas que costumam quebrar ou estragar as coisas tentando limpá-las.
Juvena era tão boa no que fazia e tão enraizada nos valores que primavam pela qualidade que chegava a provocar sérias indagações em certos patrões mais abastados. Não entendiam como uma mulher com idéias tão claras a respeito da vida e da capacidade do ser humano, podia estar ali, simplesmente limpando a casa. Mas logo que viam a dona de pensamentos tão lúcidos derrubando a vassoura de cinco em cinco minutos, de certa forma, as indagações iam se dispersando.
E mesmo entre trabalho e mais trabalho ainda, Juvena arrumou um namorado. E no segundo dia de namoro, ele disse a ela: você é uma mulher quase perfeita. Só precisa aprender a não derrubar essa maldita vassoura, de cinco em cinco minutos. Até parece que você não sabe o que está fazendo.
Juvena terminou o namoro no terceiro dia. No dia seguinte, não derrubava mais vassouras. E no outro dia, sentiu-se tão cheia de si, tão perfeita por não derrubar mais a vassoura, que se demitiu. Inventou uma pequena presilha para evitar que vassouras caíssem quando mal posicionadas. Ficou milionária e ainda diz que só não inventou a caneta bic porque chegaram antes dela.

Monday, May 12, 2008

De sol

Dos ares da manhã
se vê teu gesto de sol:
onde nasce a alma sã,
onde o dia que canta, não está só.
E o nascer dos olhos, que há em ti
me lembra dos pássaros,
cantando por aí.

Friday, May 02, 2008

Você vai?

As mais simples relações sociais nacionais ainda podem ser bastante confusas. Uma mesma conversa pode ter diferentes significados, tudo depende de um entendimento abstrato e intangível que só nós brasileiros entendemos, ou quase entendemos. Por exemplo, na hora de marcar alguma coisa:
- Legal, legal. Então... você vai?
Nesse momento cria-se uma tensão surda. Tão surda que o outro até pergunta:
- Ahn?
- Perguntei se você vai.
É aqui, nesta reafirmação, que o ego de quem pergunta se levanta de repente, desembainha uma espada e atira,
aos brados, o desafio: “Em guarda, soldado!! Aceita-me agora e pouparei tua vida, infeliz miserável!!”
E o outro, meio desconcertado, responde:
- Ahm... vou sim. Quer dizer, vou tentar ir, com certeza.
Sim! É a resposta do fidalgo, outrora despreparado para o combate!! Mas agora, meus convivas, agora a ofensa foi instigada... o desafio é eminente!! O ego desafiante expôs o próprio peito em franca contenda, perguntando se você vai!
Em outras palavras, você deve, portanto, decidir se vai ser um antipático insensível e recusar, ou se vai dar uma desculpa esfarrapada, ou ainda, se vai, enfim, para lá mesmo, para onde está sendo convidado:
- E que comam o pó da terra, aqueles que desafiam a estabelecida simpatia subjacente social brasileira!!
- Como?
- Ahm, nada. Que bom que você vai. A gente se vê lá, então.
Afinal, não importa o quanto o outro quer ir ou não. Não se pode deixar de comparecer com a simpatia brasileira assim, de repente, como se sinceridade fosse artigo de armazém.
Mas há ainda outra questão. Dependendo da entonação da pergunta, pode não ser um desafio e a resposta, por sua vez, também pode não ser uma mentira diplomática. Algumas pessoas dizem que tentam ir e, por estranho que possa parecer, de fato tentam. Umas conseguem, outras não. Contudo, há aquelas que, favorecidas pelo destino, não tentam nada e simplesmente vão - mas não por causa do convite: são pessoas que simplesmente acabaram indo parar lá, no mesmo lugar que você. Pura coincidência. Em seguida ,recebem aquele "que bom, você veio!". E se aproveitam disso:
- É claro que eu vim! Mas que coisa, rapaz.
É a virada! A repentina mudança do destino, o destino, aquele canalha que muda de amigos só pra se divertir.
- É que você parecia que...
- Pô. Até parece que você não confia.
O ego desafiador, que provocava e que expunha o próprio peito ao combate, agora se envergonha da sua incivilidade:
- Não, é que eu...
- Eu não te disse que ia tentar vir??
- Disse.
Então o desafiado desfere o golpe final, sem qualquer demonstração de clemência:
- Pois eu estou aqui ou não estou?!?!?
E já que não tem como negar a presença de quem fisicamente pergunta, o assunto está encerrado - a derrota eminente se fez triunfal e solene sobre o desconfiado desafiante.
Os simpáticos cavalheiros, normalmente se cumprimentam após o combate, a tal simpatia subjacente mantém o ocorrido em segredo e não se fala mais nisso. Quer dizer, tudo acaba ali, no golpe final. Mas isso, é claro, se forem cavalheiros.
- Aliás, você é que anda sumido. Não aparece mais...
- Não, é que eu...
Aqui, o ego desafiado não há de se contentar com a derrota do outro. Não! É preciso fazê-lo pagar pela ousadia, pelo atrevimento!
- Você parece que não liga mais pros amigos... não aparece.
E antes que o outro possa dizer, “bom, eu estou aqui, não estou?” para se defender, a espada da vingança penetra mais fundo no dorso do ego moribundo:
- Pô, cadê você, cara?!?
Contudo, mesmo após a derrota, o desafiante infamador corre pelas veladas planícies antipáticas, às vezes feliz por encontrar um pouco de antipatia, às vezes rabugento por não encontrá-la. Quando reencontra casualmente aqueles que empenharam sua palavra dizendo que estariam presentes, aqueles que aceitaram o convite só para manter a etiqueta da simpatia, regozija-se com o momento da vitória, lança-lhes o olhar de reprovação e, só pra começar, diz:
- Pô, cadê você, cara?!?

Sunday, April 27, 2008

Afterwards

On rainy days,
Every word is poetry
For it is life that says, which soul is free,
and what kind of rain comes,
as freedom has to be.
It comes rising with our words
For each beam of light
That drops the rain.
All it is afterwards, once it stops for a while
Is freedom rising again.

Saturday, April 19, 2008

Do mesmo ar

Quando abrir o céu
Será vista, a sinfonia.
Quando rir ao léu
e abraçar o dia
antes da conquista
só então se ouvirá
a paisagem que se vê.
Quando antes do sol, nascer
um canto de sabiá
nos olhos de caminhar
será vista, a sinfonia
tocando no ar.

Friday, March 07, 2008

Do ar


A cada nuvem que passa
conto pedaços de céu
tentando fotografar
a música do ar.

Monday, February 25, 2008

Írio

Írio gostava de fazer nada. Mas não era um nada qualquer. Para Írio, encontrar com os amigos no bar sem hora pra voltar já era fazer alguma coisa. Aliás, muita coisa. Írio detestava quando diziam que iam ligar para ele pra “marcar de sair e fazer alguma coisa”. Era um exagero aquilo. Além de sair ainda tinham que fazer alguma coisa. Incomodava-se constantemente com esse tipo de atitude. E fazia questão de deixar claro que não simpatizava. Afinal, ele tinha mais o que não fazer.
Írio era verdadeiramente um amante da “não-atividade”, um apaixonado pelo “fazer nada”. Estava sempre incomodado porque as pessoas eram umas desocupadas, viviam interrompendo o nada que ele estava fazendo. Por isso fazia questão de ressaltar que ninguém entende nada de nada e que a grande maioria não saberia reconhecer o nada se o visse, mesmo que estivesse debaixo do próprio nariz. Quer dizer, nada tem em todo o lugar, as pessoas não vêem porque não querem, porque não querem nem saber de nada.
Mas o fato é que ele era obrigado a conviver com todos aqueles incautos e incivilizados, imersos em ignorância: e que viviam como se o nada não existisse. Quer dizer, como se o nada não fosse nada.
- Vamos sair um pouco, Írio. Você não está fazendo nada...
- Estou sim. E você está me interrompendo.
- Mas... o que você está fazendo?
- NADA!! Quantas vezes tenho que repetir?!?
Assim que entrou na faculdade, Írio ficou viciado em trabalhar como fiscal nos vestibulares. Fazia-se muito pouco no começo das provas e minutos depois havia horas de nada pra fazer, plenas de nada inerente. Melhor ainda era quando tinha que esperar os candidatos que pediam tempo adicional. Írio freqüentemente se referia a eles como “meus preferidos”.
Em pouco tempo, profissionalizou-se e tornou-se um autônomo especializado em fiscalização de provas. Agendava sua semana pelas datas de concursos, exames psicotécnicos ou qualquer tipo de avaliação.
Desde que houvesse bastante nada pra fazer, Írio não se importava com o dinheiro, apesar de já estar cansado de ouvir da sua família o tempo todo que “nada não enche barriga” e que nada não leva a nada. Mas, a verdade seja dita: nada convencia Írio. Selecionava cuidadosamente seus trabalhos pelo tipo de nada que proporcionavam. Írio era quase um especialista em nada, sabia valorizar o nada e executá-lo como poucos. Nada lhe dava, na verdade, mais satisfação. Não havia nada que não gostasse e sempre buscava um nada que fosse nada mesmo. Um nada que, a princípio, fosse nada, mas que no fundo, intimamente, fosse nada também. Um nada simples, verdadeiro, íntegro,... nada desses nadas que não valem nada. Quer dizer, um nada que valesse a pena.
Havia poucos horários em que não fazia nada. Mesmo quando não estava trabalhando, Írio mantinha-se sempre muito ocupado fazendo nada em casa. Filosofava sobre o nada. E explicava que havia um ponto ideal para “o fazer do nada”, que era quando a noção de tempo começava a desaparecer.
- O ponto ideal, é quando você já não sabe mais se ontem foi ontem mesmo e se hoje ainda é o hoje de ontem, ou se, na verdade, já é o amanhã de hoje, ou seja, o hoje que teria então, se tornado ontem.
- O que???
- Nada, nada.
Alguns anos se passaram e Írio já não se incomodava tanto com a dificuldade que as pessoas tinham em entendê-lo. Írio era feliz, ficava satisfeito com nada. Com algum esforço encontrava bastante nada no mercado de trabalho. Além disso, aprendera a tirar lucro do nada. Era convidado para dar palestras sobre nada, uma área pouco explorada até então.
Nas férias, costumava freqüentar salas de espera de consultórios. Alguns pacientes o consideravam um exemplo, pois nunca tinham visto alguém numa sala de espera com tamanha serenidade e paz de espírito. Outros o invejavam pela mesma razão e desconfiavam dele e de toda aquela tranqüilidade aparente. Quando perguntavam a ele o que ele realmente estava fazendo ali, ele respondia, honestamente:
- Nada.
Mas ninguém acreditava nele. Não adiantava explicar.

Sunday, January 13, 2008

Crônicas

Eram muitas crônicas. Papéis amassados. Cabelos amassados, olhos amassados. Tudo parecia amassado. Ele não escrevia mais. Porque queria dizer a ela que... Bom, ele queria dizer a ela que...
Se ele soubesse as palavras, eu poderia escrevê-las aqui. O que ele disse, na verdade, foi que naquele momento, o desperdício do papel não era o mais importante. E em seguida amassou este parágrafo também. Só saiu aqui porque eu resgatei do arquivo “descartados, amassados, desprezados, deletados”. Não é muito, mas é o que ele escreveu, aquele louco. Jogando tudo fora, sempre. Como se nos erros não houvesse algo pra aproveitar.
Mas enfim. Eram muitas crônicas. E muitas delas, amassadas. Muitas. E algumas delas saíam mais amassadas ainda, como esta.

Meu sabiá

Avisto um sabiá
em árvores que a minha vista dá.
E não é longe.
É só olhar e ouvir, o canto soar.

Mas me perguntam, onde está?
Dizem que daqui, não se vê nenhum sabiá.

Mas todos ouvem, por aí, um sabiá cantar.

E se perguntam, onde está?
E eu aponto:
lá.
E se perguntam:
será?

Como se só na minha vista houvesse um sabiá!

Mas não é longe, é só olhar. E ouvi-lo cantar.